Conteúdo do impresso Edição 1294

DEMOCRACIA AMEAÇADA

O Nordeste na tentativa de golpe de Estado de Jair Bolsonaro

Relatório da PF revela como militares usaram a região para o plano golpista
Por JOSÉ FERNANDO MARTINS 30/11/2024 - 06:00
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Tânia Rêgo/Agência Brasil
Jair Bolsonaro
Jair Bolsonaro

O Nordeste, tradicional reduto eleitoral do Partido dos Trabalhadores (PT) e peça-chave em disputas presidenciais, também desempenhou um papel controverso nas eleições de 2022. Conhecida por consolidar a força do PT ao longo das últimas décadas, a região teria sido alvo de estratégias envolvendo a criação de números telefônicos burlados e a disseminação de notícias falsas para manipular a percepção pública sobre as eleições de dois anos atrás.

Na última terça-feira, 26, o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), derrubou o sigilo do relatório da Polícia Federal (PF) que investigou a tentativa de golpe de Estado. O documento aponta o possível envolvimento do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e de outros 36 indiciados em ações que ameaçaram a integridade do processo eleitoral. Agora, o relatório está sob análise da Procuradoria-Geral da República (PGR), responsável por decidir se apresentará denúncia contra os envolvidos. A revelação do conteúdo do relatório reacendeu debates sobre o impacto da desinformação e das ações antidemocráticas na política brasileira, com o Nordeste no centro das discussões.

Fraudes na Telefonia

A capital alagoana, Maceió, é citada em um trecho do relatório. O documento revela que integrantes da organização criminosa composta por militares usaram em aparelhos de celular nomes de terceiros e codinomes baseados em outros países para ocultar suas identidades. Entre os casos analisados, destaca-se o do número associado ao codinome “Áustria”, habilitado em 8 de dezembro de 2022 em nome de Alexsandro Barros de Carvalho, residente em Maceió. O vínculo foi encerrado no dia 13 do mesmo mês. As investigações apontam que Alexsandro não tem qualquer relação com o plano golpista e que seus dados foram utilizados indevidamente para anonimizar o real usuário.

Outro número vinculado ao codinome “Brasil” também foi habilitado no dia 8 de dezembro de 2022 e no nome de Arão Edmundo da Silva, residente em Salvador (BA). Assim como no caso de Alexsandro, não há evidências de que Arão tenha envolvimento com os fatos investigados. O codinome que usava a linha era “Gana”. Já o número relacionado ao codinome “Argentina 2” foi cadastrado na operadora TIM S/A, em 3 de dezembro de 2022, às 13h59, no nome de Adeildo Ferreira dos Santos. A PF aponta que Adeildo supostamente residiria em “Patrocínio, Alagoas”, mas a inexistência dessa cidade no estado levanta dúvidas sobre a precisão do cadastro. Em todos os casos, os dados de terceiros foram utilizados para dificultar a identificação dos verdadeiros usuários. 

A investigação revelou ainda que o modus operandi de anonimização se repetiu em outros terminais telefônicos usados na ação clandestina ocorrida em 15 de dezembro de 2022. De acordo com a PF, a técnica militar de anonimização, prevista na doutrina de Forças Especiais do Exército, foi empregada para mascarar os usuários reais dos números. Um documento apreendido em fevereiro deste ano, durante a Operação Tempus Veritatis, detalha essas técnicas. O material foi encontrado com o tenente-coronel Rafael Martins de Oliveira, apontado como responsável pela habilitação fraudulenta de linhas telefônicas. Segundo a PF, as informações extraídas do celular de Oliveira permitiram identificar indícios de que, no final de 2022, oficiais de alta patente do Exército monitoraram ilicitamente o ministro Alexandre de Moraes e planejaram um golpe de Estado. O objetivo seria impedir a posse do então presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva e de seu vice, Geraldo Alckmin.

ATAQUE ÀS URNAS

Trocas de mensagens entre o tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro, e o tenente-coronel Sérgio Ricardo Cavaliere de Medeiros lançam luz sobre o uso de estratégias fraudulentas para contestar o sistema eleitoral brasileiro. Em 7 de novembro de 2022, às 23h09, Sérgio Cavaliere, identificado como “Cavalo” nos registros, encaminhou áudios que teriam sido produzidos por hackers do interior de São Paulo. O conteúdo dos áudios reforçava a falsa narrativa de que nos estados do Nordeste teriam sido computados votos após as 18h, favorecendo o então candidato Luiz Inácio Lula da Silva.

Em um dos áudios, um suposto hacker afirmava que teria recebido a visita de servidores da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) interessados em detalhes sobre como as “possíveis fraudes” teriam sido identificadas. As investigações indicam que a organização criminosa, operando com uma clara divisão de tarefas, utilizou influenciadores digitais, membros do Partido Liberal, sigla de Bolsonaro, e militares para ampliar ataques ao sistema eletrônico de votação. O objetivo seria criar um ambiente propício para a execução de um golpe de Estado, deslegitimando o resultado das eleições presidenciais e minando a confiança na democracia brasileira.

Retaliações

A Polícia Federal ainda revelou mensagens que indicam a articulação da quadrilha contra generais do Exército Brasileiro que se posicionaram contrários a um golpe de Estado. No dia 15 de novembro de 2022, às 23h02, o coronel do Exército Bernardo Corrêa Netto enviou cinco fotografias ao contato identificado como Fabrício Bastos. As imagens traziam nomes de generais da ativa que resistiam à ideia de uma ruptura institucional. “Quem dera fossem só esses”, escreveu Corrêa Netto após o envio. Os generais mencionados eram líderes de comandos estratégicos no Nordeste, Sul e Sudeste: o general Richard Nunes (Comando Militar do Nordeste), o general Valério Stumpf e o general Tomás Paiva. 

De acordo com investigadores, esses oficiais foram alvos de ataques coordenados em retaliação a suas posturas contrárias a iniciativas golpistas. O caso ganhou repercussão em 28 de novembro de 2022, durante o programa Os Pingos nos Is, transmitido pela Jovem Pan. Na ocasião, o comentarista Paulo Renato de Oliveira Figueiredo Filho, neto do ex-presidente João Figueiredo, citou nominalmente três generais, alegando que eles se opunham a “uma ação mais direta e contundente das Forças Armadas”. 

Ele mencionou os generais Richard Fernandes Nunes e Tomás Miguel Miné Ribeiro Paiva, e, equivocadamente, apontou o general Valério Stumpf Trindade como comandante Militar do Sul — cargo, na época, ocupado pelo general Fernando José Sant’Ana Soares e Silva. Durante o programa, Paulo Figueiredo comentou: “Há três deles, três dos que têm se colocado de forma aberta na articulação contra uma ação mais direta, mais contundente das Forças Armadas, e nem sempre nós, como jornalistas, podemos falar tudo que essas fontes contam, né?”. 

O depoimento do coronel Corrêa Netto à Polícia Federal reforçou o caráter estratégico da exposição pública desses nomes. Segundo ele, o objetivo de Paulo Figueiredo ao divulgar os generais seria aumentar a pressão sobre os militares que resistiam a aderir a planos de ruptura democrática. Importante destacar que, na data de 18 de novembro de 2022, um vídeo que teria sido registrado às 09h50min gravou o general Braga Netto, que concorreu ao cargo de vice-presidente, em frente ao Palácio do Alvorada, onde se encontrou com manifestantes. Parte deles afirmou que se manifestava na frente do Comando Militar do Nordeste e citou o comandante local: o general Richard.

GOLPISTAS

De acordo com o relatório da Polícia Federal (PF), os investigados buscaram, desde o início do governo de Bolsonaro, em 2019, manter o ex-presidente no poder a qualquer custo. O general Augusto Heleno, então ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), teria desempenhado um papel central nesse processo, trabalhando para minar as instituições democráticas. O documento revela que Heleno teria sugerido que a Advocacia-Geral da União (AGU) revisasse decisões judiciais em uma tentativa de subverter o regime.

A PF também aponta que uma minuta de decreto golpista foi elaborada por Bolsonaro com o apoio de um núcleo jurídico. A data para a assinatura do decreto estava marcada para 15 de dezembro de 2022, conforme indicam os registros. Além disso, o relatório sugere que o ex-presidente, temendo uma possível prisão, deixou o Brasil em 30 de dezembro de 2022. A fuga teria ocorrido enquanto o país aguardava o desfecho dos ataques aos três Poderes, que culminaram em 8 de janeiro de 2023.


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