Conteúdo do impresso Edição 1279

LOTERIA NO JUDICIÁRIO

Advogados são suspeitos de aplicar golpe contra instituições financeiras

Casos podem se enquadrar em esquema que vem sendo aplicado em todo Brasil
Por Redação 17/08/2024 - 06:00

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BMG apresentou queixa contra Isaac Mascena
BMG apresentou queixa contra Isaac Mascena

O Ministério Público de Alagoas (MPAL) remeteu ao Ministério Público de Pernambuco (MPPE) uma denúncia contra o advogado alagoano Isaac Mascena Leandro após acusação do Banco BMG, que alega má-fé por parte do profissional em uma série de processos contra a instituição financeira. O caso, que levanta suspeitas de lide temerária, traz à tona questões sobre o volume expressivo de ações ajuizadas por Leandro em um curto período de tempo, além de possíveis irregularidades em documentos apresentados.

A lide temerária se caracteriza como uma ação proposta de maneira ilegal ou ilícita, a fim de obter vantagem. Pode existir lide temerária quando o advogado altera os fatos ocorridos e induz o juiz a erro. De acordo com o BMG, os processos movidos pelo advogado seguem um modelo padronizado. A instituição argumenta que uma simples pesquisa no site do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE) revela a existência de um grande número de processos iniciados pelo advogado, todos eles semelhantes tanto em termos de argumentação quanto de pedidos. As ações são distribuídas em nome de pessoas físicas diferentes, mas todas envolvem a mesma questão de direito e a solicitação do benefício da justiça gratuita.

Para o BMG, é pouco crível que, em uma comarca com tantos advogados habilitados, todos os clientes insatisfeitos com o banco procurem o mesmo profissional em um curto intervalo de tempo. Além disso, a instituição questiona o fato de todos os clientes apresentarem o mesmo tipo de inconformismo, com causas de pedir e pedidos idênticos. Uma das principais acusações contra Leandro é a prática do chamado “fatiamento de ações”.

De acordo com a instituição financeira, o advogado estaria ajuizando múltiplas ações idênticas em nome das mesmas partes, o que sugere um objetivo de obter vantagens financeiras indevidas. Esse tipo de prática, segundo a defesa do banco, visa a condenação da parte adversa em verbas sucumbenciais e indenizações por danos morais, caracterizando demandas repetitivas que sobrecarregam o sistema judiciário.

A situação se agravou com a descoberta de indícios de adulteração de documentos em um dos processos. Uma análise realizada pelo BMG identificou que o código binário do comprovante de residência de um dos reclamantes, conhecido como CEPNet, não correspondia ao CEP indicado no documento. O código binário é utilizado pelos Correios para identificar o CEP correto de correspondências. Nesse caso específico, o advogado teria apresentado um endereço de um cliente de Salgueiro (PE) com um código de identificação da Avenida Boa Viagem, em Recife, uma distância de mais de 500 km entre as duas localidades.

Vale destacar que o advogado em questão também tem outro endereço, esse localizado no bairro Feitosa, na capital alagoana. Além das ações em Pernambuco, Leandro também acumula uma quantidade expressiva de processos em Alagoas. Em uma rápida pesquisa realizada pelo EXTRA no portal do TJAL, foram encontrados 1.777 processos movidos pelo advogado em primeira instância, tanto na capital quanto no interior do estado. Esses números reforçariam a suspeita de que o advogado estaria utilizando o Poder Judiciário de forma abusiva. Diante dessas evidências, o Ministério Público de Alagoas decidiu encaminhar o caso para o MP de Pernambuco, onde parte dos processos também foi ajuizada.

O modus operandi do advogado Isaac Mascena Leandro, segundo as acusações, envolve indícios de lide temerária e fatiamento de ações, caracterizados pelo ajuizamento de múltiplos processos idênticos com o objetivo de obter vantagens financeiras indevidas. Além disso, há suspeitas de fraude, incluindo a utilização de comprovantes de residência em nome de terceiros. No dia 20 de março deste ano, o juiz de Direito Maurício César Breda Filho também encaminhou à Procuradoria-Geral de Justiça um pedido de apuração sobre possível litigância predatória praticada pelo advogado Isaac Mascena Leandro.

Denunciante de paradeiro desconhecido

Um outro caso de suspeita de fraude contra instituição financeira também está sendo investigado pelo MP de Alagoas, desta vez envolvendo o advogado Fernando Auri, de Santa Catarina, mas que atua em Belém do Pará, realizando processos em terras alagoanas. A denúncia foi motivada no curso de uma ação movida contra o Banco Pan, na qual Auri representa uma suposta cliente, Rosa Cristina de Melo dos Santos, em uma Ação Declaratória de Nulidade Contratual e Inexistência de Relação Jurídica, combinada com pedidos de repetição de indébito e indenização por danos morais. No entanto, o caso levantou suspeitas de fraude e práticas predatórias.

Na ação, Auri argumenta que Rosa Cristina, aposentada e residente em Maceió, teria contratado um empréstimo consignado com o Banco Pan, mas descobriu posteriormente que os descontos em seu benefício do INSS se referiam a uma “Reserva de Margem de Cartão de Crédito”, e não a um empréstimo consignado convencional. Segundo o advogado, o banco teria aplicado um golpe ao realizar a operação de forma distinta do que foi acordado, uma prática que, segundo Auri, afeta milhares de aposentados e pensionistas em diversos estados brasileiros.

Entretanto, em abril deste ano, as suspeitas de irregularidades na ação começaram a surgir quando o oficial de justiça, ao tentar intimar Rosa Cristina no endereço da petição inicial, foi informado por vários moradores da localidade que ela não residia naquele local e que não era conhecida por ninguém na região. Diante disso, a juíza Marcella Leal Restum Faria Dutra, da 10ª Vara Cível da Capital, determinou que a parte autora comparecesse pessoalmente ao Juízo para ratificar a veracidade das informações prestadas, sob pena de extinção do processo.

A determinação judicial seguiu as diretrizes da Nota Técnica nº 02/2023 do Centro de Inteligência de Justiça Estadual do Tribunal de Justiça de Alagoas (TJAL), que visa coibir práticas de litigância predatória. Em seu despacho, a juíza Marcella Leal observou que, além de Rosa Cristina não ter sido encontrada no endereço indicado, não houve cumprimento das demais diligências solicitadas, como a emenda da petição inicial e a apresentação dos documentos pessoais da autora. Diante dessas irregularidades, a magistrada decidiu pela extinção do processo, citando a possível natureza predatória da ação. Diante das suspeitas, o MP de Alagoas está conduzindo a apuração do caso por meio da Coordenadoria das Criminais Residuais.

Ação impetrada à revelia de beneficiário

Em junho de 2024, o juiz Henrique Gomes de Barros Teixeira, da 3ª Vara Cível da Capital, proferiu uma sentença que trouxe à tona as práticas irregulares em ações judiciais. A decisão foi tomada em uma ação declaratória de nulidade contratual movida por Antônio Pádua de Verçosa Lima contra o Banco BMG S/A. No entanto, o processo revelou que o autor não havia, de fato, autorizado a abertura da ação, levantando novas suspeitas sobre a conduta de Fernando Auri, advogado da causa.

Segundo os autos, o advogado teria ajuizado a ação sem a devida procuração do cliente, o que foi confirmado pelo próprio autor, que declarou não ter assinado qualquer documento autorizando o advogado a representá-lo. Além disso, foi registrado um boletim de ocorrência denunciando a fraude na assinatura da procuração e a prática de estelionato. Diante dessa constatação, o juiz considerou a ação inepta e extinguiu o processo sem resolução do mérito.

O caso não é isolado. Auri tem sido responsável por um volume considerável de processos semelhantes no Tribunal de Justiça de Alagoas, totalizando 1.170 ações somente no estado. Além disso, há indícios de que o advogado possa ter violado dispositivos do Estatuto da Advocacia, especialmente no que diz respeito à captação de clientes e causas, o que pode configurar uma infração ética grave. Como resultado, o juiz determinou o envio de ofícios ao Conselho de Ética da OAB/AL para que o caso seja investigado, bem como ao Núcleo de Monitoramento de Perfil de Demandas e Estatística (Numopede) do Tribunal de Justiça e ao Ministério Público Estadual, visando à adoção de medidas em âmbito estadual e à proteção de direitos dos envolvidos.

De acordo com o Cadastro Nacional de Advogados (CNA) da OAB, Auri possui registro principal no Paraná e de suplementar em Alagoas e em Santa Catarina. Tem como endereço profissional o escritório Fernando Cardoso Sociedade Individual de Advocacia de CNPJ 43.982.318/0001-28, fundada em 22 de outubro de 2021 na cidade paranaense de Paranavaí.

Alerta do Judiciário

Seguindo recomendação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), uma nota técnica foi emitida pelo Centro de Inteligência Estadual do Tribunal de Justiça de Alagoas alertando para a crescente prática de ajuizamento de causas repetitivas e fabricadas, que tem transformado o Judiciário em uma espécie de “loteria gratuita”. Esse fenômeno se deve à ausência de custas processuais em muitas dessas ações, permitindo que advogados obtenham ganhos consideráveis ao recrutar um grande número de pessoas através de captadores locais.

Esses profissionais, muitas vezes de outras regiões, patrocinam milhares de processos em diversas comarcas do estado, sobrecarregando o sistema judicial. A investigação aponta para a existência de uma rede de captação local, com relatos de casos em que os autores das ações afirmam desconhecer os advogados que os representam, não terem assinado contratos e nem reconhecerem suas próprias assinaturas nas procurações dos autos, reforçando as suspeitas de fraude generalizada.

Outro lado

O EXTRA tentou contato com o advogado Isaac Mascena Leandro, por meio de um número de telefone com final 90, mas não obteve retorno. O advogado Fernando Auri, por sua vez, informou que ainda não houve nenhuma denúncia formal e que não foi notificado sobre o caso. “Estou tentando entender como vocês tiveram acesso a isso sendo que nem tem uma denúncia ainda. E como foi dito por telefone, não é para ser exposto o nome devido a restrições e medidas administrativas e judiciais cabíveis”, acrescentou.

Igualmente procurada pelo semanário, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) em Alagoas ressaltou não ter recebido qualquer comunicação oficial a respeito do assunto até o fechamento desta edição, na quinta, 15. Todas as informações da reportagem constam de documentos anexos ao processo que tramita perante o MPAL.



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