Conteúdo do impresso Edição 1290

JOANA DA PAZ

Livro conta história da alagoana que documentou o tráfico de Copacabana

Ela é reconhecida internacionalmente por haver denunciado, aos 80 anos, o narcotráfico e a corrupção policial no Rio
Por TAMARA ALBUQUERQUE 02/11/2024 - 08:29

ACESSIBILIDADE

Fábio Gusmão/Extra
Joana Zeferino da Paz em 2006, com sua câmera
Joana Zeferino da Paz em 2006, com sua câmera

Em tempos de inversão dos valores morais, os brasileiros podem se inspirar na história de vida real de uma pessoa que, inconformada com a violência e a destruição provocada na sociedade pelo tráfico de drogas, travou uma verdadeira batalha para libertar uma comunidade do domínio do crime na zona sul do Rio de Janeiro.

A oportunidade de conhecer a mulher que virou símbolo de coragem aos 80 anos e que ficou conhecida como Dona Vitória, vem do relançamento do livro “Dona Vitória Joana da Paz” (Editora Planeta) escrito pelo jornalista Fábio Gusmão, atual editor executivo do jornal carioca Extra.

Personagem real, forte, decidida, persistente e bondosa, Dona Joana enfrentou o narcotráfico e a corrupção policial com uma câmera, onde registrava o dia a dia de traficantes na Ladeira dos Tabajaras, em Copacabana. Os registros feitos pela aposentada, da janela de seu apartamento, alimentaram uma investigação de quase dois anos e que terminou com 30 presos, entre os quais, autoridades da Polícia Militar. Uma série de reportagens do jornal mostrou tudo com detalhes em 2005.

O preço pela denúncia registrada diariamente nas imagens foi o anonimato e, posteriormente, a despedida de sua casa onde viveu por 36 anos por questões de segurança e ao ingressar no programa de proteção a testemunhas. Dona Vitória morreu no ano passado, em 22 de fevereiro, vítima de um acidente vascular cerebral aos 97 anos, em Salvador (BA).

Somente agora, com a segunda edição do livro inspirado em sua história de vida, finalmente chega ao fim um segredo de quase duas décadas. A identidade dessa mulher, forjada na coragem, foi revelada: Joana Zeferino da Paz, alagoana, nascida em maio de 1925 em Quebrangulo.

“Desde o momento em que a gente publicou a reportagem, ela [Joana da Paz], queria uma coisa: que todos soubessem quem era ela. E no [primeiro] livro, a gente, por óbvio, como na reportagem, não podia revelar. Quando ela partiu, infelizmente, a história dela, o legado e os ensinamentos mereciam ter o crédito: quem era aquela mulher forte, quem era Joana Zeferino da Paz. Desde então tinha uma longa jornada que faltava contar e a gente achava que era importante contar isso numa nova edição”, disse o escritor em reportagem, 17 anos após a publicação do livro original.

Estupro em Quebrangulo

A coragem sempre foi uma característica da personalidade de dona Joana da Paz, que desde adolescente teve de enfrentar, sozinha, uma vida de muito sofrimento. Foi perseguida e frequentemente estuprada pelo fazendeiro proprietário das terras onde a família dela vivia, em uma fazenda em Quebrangulo (AL). Engravidou, foi separada da família sem opção de despedida, enviada para o trabalho doméstico em cidades distantes para esconder a gravidez indesejada, agredida, tratada sem humanidade.

Sozinha, após peregrinar por meses, voltou para casa da mãe e denunciou o estuprador. Joana teve um filho, que perdeu por uma doença cardíaca antes que ele completasse 2 anos. Mas sobreviveu com senso moral elevado, a ponto de arriscar sua vida para denunciar a tragédia que o tráfico de drogas levava à favela em frente a sua residência.

A repercussão internacional da história dá a dimensão do feito de dona Joana da Paz. A força da alagoana ganhou o mundo, atravessou continentes e mereceu destaque em jornais como El País, da Espanha, Le Monde, da França, El Clarín, da Argentina, e The Independent, da Inglaterra, lembra Fábio Gusmão em matéria escrita para O Globo.

Em dezembro de 2005, Joana da Paz foi uma das vencedoras da 14ª edição do Prêmio PNBE (Pensamento Nacional das Bases Empresariais) de Cidadania, uma das mais tradicionais premiações de responsabilidade social do país. Em março, foi novamente homenageada com o prêmio Faz Diferença, do Globo, como personalidade de 2005 do Rio de Janeiro. Mesmo de longe, ela arrumou um jeito de agradecer. Em uma mensagem gravada, Joana afirmou ter agido como qualquer ser humano, e não como heroína.

Os que a conheceram afirmam que Joana da Paz sempre estava com sorriso no rosto, com gana de viver. Sempre falava que queria chegar aos 100 anos, tinha alegria de viver, estava sempre dançando, nunca reclamava de nada e sempre esperando coisas boas.

História no cinema

Em breve, a trajetória da idosa alagoana, forjada na coragem, também será contada nos cinemas no filme Vitória, protagonizado por Fernanda Montenegro — uma grande vontade de Joana. O longa, um filme original Globoplay com produção da Conspiração, marca também o último trabalho do diretor Breno Silveira, que morreu após um ataque cardíaco durante as filmagens, em 2022, e foi continuado por Andrucha Waddington.


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