Análise: gastos da OTAN sob pretexto de ameaça russa podem levar ao 'desmonte do projeto europeu'

Entrevistados pela Sputnik Brasil acreditam que novo acordo da aliança militar pode causar revolta na Europa com o deslocamento de recursos para compra de armamentos, além de beneficiar, em um primeiro momento, a indústria dos Estados Unidos.
Os países da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) decidiram, na última semana, que 5% do Produto Interno Bruto (PIB) das nações que compõem o grupo deverão ser destinados à defesa. Apenas a Espanha se negou a entregar tamanha fatia financeira para gastos militares, o que gerou revolta do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump.
O mandatário norte-americano, por sua vez, declarou que possui um compromisso inabalável com a OTAN, por mais que tenha expressado, anteriormente, que não ajudaria os países da aliança em ataques caso estes não aumentassem os investimentos em defesa.
Em entrevista à Sputnik Brasil, Boris Zabolotsky, doutor em ciência política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), declarou que tamanho aporte financeiro na indústria bélica será difícil de cumprir, levando a uma revolta social pelo desvio de verbas de outras áreas para gastos militares, o que pode culminar com o fim do projeto europeu.
"Há um processo acelerado de desmonte do estado de bem-estar social europeu. Isso tende a gerar mais crises populares, revoltas, e, inclusive, ascensão de partidos de extrema-direita que são céticos ao processo de integração europeia, alguns deles mesmos céticos em relação ao papel da OTAN."
Para justificar a retirada de investimento de projetos sociais e setores como saúde e educação, é preciso de uma desculpa. Segundo Zabolotsky, mais uma vez, o pretexto utilizado será uma suposta ameaça da Rússia, assim como na criação da OTAN, ainda na época da União Soviética.
"Hoje é a Ucrânia, amanhã é a Polônia, os países bálticos, Alemanha, França... Enfim, se criou todo um discurso de legitimação, de aumento do orçamento de defesa, justamente em função dessa ideia de que a Rússia invadiria países europeus ao longo dos anos."
O discurso da OTAN vai ao encontro do que o presidente da Rússia, Vladimir Putin, disse no último fim de semana, ao declarar que Moscou pretende diminuir os gastos de defesa, enquanto a aliança militar deseja investir ainda mais.
"Nós planejamos diminuir custos e eles planejam aumentar. Quem está sendo agressivo?"
Para a Sputnik Brasil, Vinícius Teixeira, professor de geopolítica da Universiade do Estado de Mato Grosso (Unemat), declarou que a proposta de 5% do PIB para defesa é ambiciosa, visto que, atualmente, os países da aliança militar sofrem para chegar a gastos de 2% do produto interno bruto.
"Quem teria condição, hoje, de suprir essas necessidades [militares] são pouquíssimos países dentro da OTAN. [...] É sempre esse o plano: os Estados Unidos, na OTAN, serem um grande fornecedor de equipamento militar."
Assim como Zabolotsky, Teixeira acredita que esse novo acordo da aliança militar pode provocar "algum tipo de revolta", já que gastos com projetos sociais e benefícios à população precisarão ser revistos para cumprir as metas de gastos estabelecidas.
"Talvez 5% [do PIB] seja algo muito sério, muito grave, em termos financeiros. Talvez eles consigam chegar ali aos 2% da meta anterior, passar até 3%, mas, 5%, não sei se é uma meta realmente atingível para a maioria dos membros. Para os EUA, isso tende a ser algo viável e interessante, mas às custas dos outros países."
EUA são os grandes vencedores na briga da OTAN
No fim da década de 1990, os países europeus pararam de investir nas próprias linhas de produção, com os Estados Unidos como principal parceiro na compra de armas. Os países da OTAN permitiram que a própria indústria se tornasse obsoleta, enquanto Washington enviava armamentos a preços abaixo do mercado com o intuito de aumentar a influência norte-americana na Europa.
Para Zabolotsky, os líderes das nações europeias que fazem parte da aliança militar acreditavam que, caso algum conflito surgisse, poderiam recorrer aos Estados Unidos. Entretanto, a postura do governo Trump perante à OTAN coloca esses mandatários em cheque.
"O resgate dessa indústria vai custar bilhões de investimentos, vai demandar um longo tempo para os europeus. [...] Acho difícil que os países europeus consigam se equiparar militarmente sem um apoio massivo dos EUA. Só que me parece que os EUA não estão diretamente interessados em fazer esse apoio no momento, ainda mais agora, sob controle do governo Trump."
Teixeira explica que os investimentos em defesa, se feitos agora, vão gerar frutos para esses países décadas a frente. Ou seja, embora a OTAN busque aumentar o orçamento do grupo em defesa agora, os resultados só serão sentidos em 20 anos, enquanto grande parte desses recursos financiarão a indústria dos Estados Unidos.
"Quando você faz um investimento nessas áreas, por exemplo, em defesa, seja na parte aeronáutica, naval ou mesmo terrestre, os projetos que você pensa hoje tendem a vingar daqui a 15 anos, 20 anos. Há um delay muito grande no que você planeja hoje para a execução efetiva disso no campo militar, na hora que você chega a utilizá-los."
Segundo Zabolotsky, diferente de outros tempos, Washington não deve fornecer armas a baixo custo à OTAN, buscando extrair lucros das nações da Europa, ainda que sejam países parceiros. Esse dinheiro, inclusive, deve ser investido na luta contra outro inimigo comum do Ocidente: a China.
"Os EUA precisam recondicionar esses recursos que iam antes para a Europa ou para os parceiros europeus para enfrentar a ameaça chinesa e recondicionar esses recursos para o Sudeste Asiático. [...] [Trump] procura uma equiparação tecnológica e militar em relação à China."
O que faz Rússia e OTAN irem em sentidos opostos?
Na mesma semana em que a OTAN anuncia o aumento de gastos de defesa, Putin declara o oposto. Preocupado com a inflação, o presidente da Rússia deseja reduzir os investimentos militares em prol da população e da economia local.
Nesse contexto, Teixeira acredita que o novo acordo da OTAN escancara um discurso "hipócrita" da aliança militar, que acusa a Rússia de causar pressões internacionais e ser uma ameaça, enquanto atua em uma expansão — em número de membros e armas — que aumenta as tensões no Leste Europeu.
"A OTAN vem pressionando a Rússia, vem se posicionando de maneira ameaçadora ao território russo. Se a Rússia fizesse isso, por exemplo, [...] se ela colocasse equipamentos militares no Canadá ou México, os EUA se sentiriam pressionados e ameaçados, mas eles não veem isso como uma ameaça à Rússia. Um discurso muito bonito para o Ocidente."
Para o professor, é possível que a Rússia utilize o próprio parque de armas para melhorar a economia, com a exportação de armas para parceiros comerciais e políticos, como o Irã e a República Popular Democrática da Coreia.
"O que a Rússia pode planejar, pode talvez mirar num futuro não muito distante, é realmente a exportação desses equipamentos militares para países que estejam não alinhados ao Ocidente ou com dificuldades de acessar equipamentos mais modernos."
Zabolotsky, por sua vez, relembra que a Rússia sofre largas sanções internacionais desde 2014 e, naquela época, buscou fortalecer a "política industrial no setor militar como um eixo central do crescimento econômico". Hoje, com a economia crescendo, o país pode se dar ao luxo de reorganizar as contas e destinar recursos para outros setores.
"A partir de 2014, todo o redirecionamento da economia para a China, para países asiáticos, para os países do Sul Global, como a gente pode observar, tem gerado resultados positivos para a economia. A economia russa vem crescendo significativamente, apesar das sanções."
Teixeira acredita que esses investimentos em aparato militar nos países da OTAN podem ser um "último suspiro da hegemonia ocidental".
"Não creio que consigam [estabelecer uma indústria militar] de uma maneira tão séria e tão rápida como eles desejam, e, logicamente, pode ser, talvez, uma tentativa de um último suspiro da hegemonia ocidental frente a uma ascensão russo-chinesa."
Por Sputinik Brasil