CAIXA PRETA

Hospital Veredas recebeu R$ 1 bilhão de recursos públicos em sete anos

Instituição filantrópica atrai verbas públicas desde que o PP assumiu o controle do Ministério da Saúde, em 2016
Por Redação 02/07/2023 - 16:00
Atualização: 02/07/2023 - 16:01

ACESSIBILIDADE

Divulgação
Hospital Veredas: caixa preta que recebeu R$ 1 bilhão de recursos em sete anos
Hospital Veredas: caixa preta que recebeu R$ 1 bilhão de recursos em sete anos

O tradicional Hospital do Açúcar, em Maceió, criado na década de 1950 por usineiros e produtores de cana, passou por uma ampla reforma e reabriu suas portas em abril de 2019 com um novo nome: Hospital Veredas. É um prédio imponente, localizado em frente a um parque, com 264 leitos. Atualmente, o nome do hospital está desgastado junto à população de Maceió por promover calote aos profissionais. O Veredas deve ao pessoal da área de enfermagem pelo menos três folhas salariais, além de férias e de não honrar com o parcelamento intermediado na Justiça para pagar o 13 salário de 2022 dos funcionários. Nem mesmo quem foi demitido no ano passado recebeceu verbas indenizatórias.

No entanto, levantamento da reportagem da  Revista Piauí (Folha de S.Paulo) em parceria com a Agência Pública, revela que o que chama atenção para o hospital é o poder de atrair verbas públicas, sobretudo a partir de 2016. Em maio daquele ano, dias depois do afastamento da presidente Dilma Rousseff, o PP, o partido do presidente da Câmara Federal, Arthur Lira, assumiu o controle do Ministério da Saúde. Daí em diante, o Hospital Veredas recebeu uma quantia fabulosa: quase 1 bilhão de reais.

Segundo a reportagem especial, em repasses federais, foram R$ 287 milhões. Em repasses estaduais, R$ 271 milhões e, em repasses municipais, mais R$ 413 milhões. 

“É um montante altíssimo”, espantou-se José Wilton da Silva, presidente do Conselho Estadual de Saúde de Alagoas. Ele já adiantou que fará uma análise detalhada dos repasses ao hospital e, se for o caso, vai propor uma auditoria nas contas do Veredas. “Precisamos saber por que o Veredas recebe mais do que os outros hospitais e por que tem uma dívida há muitos anos incontrolável.” O momento solene de abertura da torneira federal que começou a jorrar dinheiro para o Veredas em 2016 só aconteceu no ano seguinte, no dia 26 de julho de 2017.

Naquela data, o ministro da Saúde, Ricardo Barros, PP do Paraná, esteve em Maceió para uma visita ao hospital, que ainda se chamava Hospital do Açúcar. Ao ministro, juntaram-se o deputado federal Arthur Lira e seu pai, o então senador Benedito de Lira, ambos do PP. Em uma solenidade, a trinca anunciou a liberação de R$ 6 milhões de reais para o hospital. “Nós estamos muito felizes que, realmente, o Ministério da Saúde volta os olhos para essa casa, e com o apoio integral do senador Benedito de Lira e do deputado Arthur Lira”, festejou o presidente do hospital, o médico Edgar Antunes Neto. Era o dinheiro para a reforma que, dois anos depois, estaria concluída. Antunes permanece até hoje no comando da unidade.

Segundo a reportagem, antes de partir da solenidade em Maceió a bordo de um avião da FAB, o ministro Ricardo Barros fez questão de dizer que a liberação do dinheiro atendia uma demanda dos Lira. Num vídeo, Barros deixou gravado que a visita tinha sido “interessante” e agradeceu a “insistência” do deputado e do senador pelos recursos. “Liberamos R$ 6 milhões de reais para custeio do Hospital do Açúcar a pedido do deputado Arthur Lira, do senador Benedito de Lira. É muito importante que nós possamos recuperar o Hospital do Açúcar para um atendimento cada vez melhor da saúde de todo o povo de Alagoas”, destacou. Depois disso, veio o derrame de dinheiro público, que, só em verba federal, totalizou R$ 287 milhões de reais.

Sem estrutura

Entre os hospitais filantrópicos de Maceió, o Veredas é o maior em número de leitos e de funcionários, superando a Santa Casa e o Hospital Sanatório. No entanto, atende menos gente e, portanto, tem custo menor. Os atendimentos ambulatoriais do Veredas são bastante inferiores aos da Santa Casa, por exemplo. Entre 2020 e 2022, a Santa Casa teve uma média anual de 378 mil atendimentos, contra apenas 67 mil do Veredas.

Seus custos também são muito menores que os da Santa Casa. No ano passado, o custo dos atendimentos da Santa Casa registrados no SUS chegou a 32 milhões de reais, enquanto o do Veredas não passou de 7 milhões. Além dos atendimentos e dos custos, as internações também são menores. A Santa Casa fez 15.904 internações entre 2021 e 2022, contra 10 720 do Veredas. Os gastos do Veredas com internações ficaram abaixo até do que as despesas de duas instituições com estruturas até menores, como o Hospital da Mulher e o Hospital Universitário.

Mesmo assim, o Veredas é o destino final de muito dinheiro, afirma a matéria.

Se em Brasília a disputa pelo cofre da Saúde é acirrada, em Maceió o cofre do Veredas está dominado. Desde 2017, só aliados ou parentes de Arthur Lira administraram a massa de dinheiro destinada ao Hospital Veredas. De julho de 2017 a outubro de 2022, o cargo de diretor financeiro do hospital foi ocupado por Adeilson Loureiro Cavalcante, político ligado a Lira que já figurou em escândalos na Saúde. 

Com a saída de Cavalcante, o cargo passou a ser ocupado por Pauline Pereira, prima de Lira. Ela também ocupa uma das dezesseis cadeiras do conselho deliberativo do hospital, onde César Lira, outro primo do presidente da Câmara, também tem assento. (Uma rápida descrição dos laços de sangue e de verbas: Pauline Pereira é irmã de Joãozinho Pereira, o chefe da Codevasf, o epicentro dos recursos do orçamento secreto em Maceió. César Lira, por sua vez, acumula o cargo no conselho do hospital com o posto de superintendente estadual do Incra. O Incra de Alagoas é a quarta unidade do instituto que mais recebeu pagamentos no país durante o governo Bolsonaro.

Apesar da fartura de recursos públicos, o Hospital Veredas encontra-se em graves dificuldades financeiras. Uma investigação conjunta da Piauí e da Agência Pública mostra que o agravamento dos problemas do hospital coincide com o começo da gestão do PP no Ministério da Saúde, em Brasília. No último dia 16 de junho, os funcionários entraram em greve porque chegaram a ficar três meses sem receber salário neste ano e, até hoje, não receberam o décimo-terceiro do ano passado.

O Ministério da Saúde, por meio de uma nota, informou que “a pasta não tem nenhuma interferência na gestão administrativa do estabelecimento [Veredas] e nenhuma indicação foi realizada pela atual gestão”. Procurado pela reportagem, o deputado Arthur Lira não quis se manifestar. Fica em aberto a questão central: como o hospital sob o comando da turma do deputado recebeu tanto dinheiro e não tem recursos nem para pagar salários?

Caixa preta

A Piauí e a Agência Pública pediram acesso aos balanços financeiros do Veredas, ou, pelo menos, informações sobre pagamentos a fornecedores e escritório de advocacia, mas o hospital não quis fornecer. Analisando-se ações movidas pelo Veredas na Justiça, no entanto, é possível constatar que a instituição está habituada a contratar advogados com projeção nacional e laços com o poder em Brasília – o que não é irregular. 

Em 2018, por exemplo, contratou o advogado Eduardo Martins, filho do ministro do Superior Tribunal de Justiça, alagoano Humberto Martins. Entre 2018 e 2019, Eduardo assinou quatro petições no processo em que o Veredas pede imunidade tributária por ser uma entidade filantrópica. Procurado pela reportagem, Eduardo achava que havia atuado pelo hospital “dez anos atrás”, mas, apresentado às petições mais recentes, reconheceu que se equivocou. Ele não quis informar os valores que recebeu.

O Veredas também já contratou a advogada Roberta Maria Rangel, mulher do ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal. Seu escritório, o Rangel Advocacia, atuou numa ação movida pelo Veredas junto ao Conselho Nacional de Justiça, órgão que fiscaliza o Judiciário. Na ação, o hospital alegou que um desembargador de Alagoas perseguia a fundação que administra o Veredas em razão de desavenças com Edgar Antunes, o presidente do hospital, mas perdeu a causa. Procurada pela reportagem, Rangel confirmou sua atuação no processo e não comentou os honorários. “Os dados devem ser preservados por imposição contratual e legal”, disse ela, por meio de sua assessoria.

Diante da falta de informações do hospital e de advogados, não é possível estimar quantos milhões de reais foram gastos com honorários enquanto a entidade afunda em dívidas e não paga salários. Mas fontes ouvidas em Maceió acreditam que os contratos de advocacia do Veredas são dutos por onde escoam milhões de reais.

Pandemia

Os privilégios do Veredas na distribuição de recursos públicos ficaram mais evidentes com a chegada da pandemia. Em 2016, quando o Ministério da Saúde já estava com o PP, o hospital havia recuperado o chamado Cebas, um certificado importantíssimo que isenta um hospital filantrópico do pagamento de impostos e permite que faça convênios com o poder público. O resgate do Cebas foi uma novela. 

No governo Dilma Rousseff, o Ministério da Saúde recusou duas vezes a emissão do documento em razão do descumprimento de três normas essenciais. A última recusa saiu numa nota técnica de 18 de novembro de 2015. Noves meses depois, já sob o governo Temer, tudo mudou. Em uma decisão, fundamentada em menos de duas linhas, um juiz da Justiça Federal em Brasília suspendeu as inscrições em dívida ativa lançadas contra o hospital. O Ministério da Saúde informou que o Cebas do Veredas segue vigente.

Com a mudança, o Veredas passou a receber um tratamento preferencial em relação aos demais hospitais na divisão de recursos do SUS, em especial na pandemia. No ano de 2020, até o fim de agosto, no primeiro pico da doença, o Ministério da Saúde mandou R$ 54,1 milhão de reais para a Secretaria Municipal de Saúde de Maceió e para algumas unidades hospitalares localizadas na cidade, mas o grosso foi destinado para o Veredas: R$ 31,9 milhões de reais. Ou seja: o Veredas levou 60% dos recursos numa cidade com 249 estabelecimentos públicos e privados vinculados ao SUS. A fatia do Veredas foi quase o triplo do que foi destinado à Santa Casa, que ficou com apenas 11,3 milhões. A divisão faria sentido se o Veredas concentrasse a maior parte dos atendimentos, mas isso não aconteceu.

A reportagem destaca que de agosto até o final de 2020, o Veredas continuou atraindo dinheiro para o enfrentamento à pandemia. Recebeu mais R$ 7 milhões e fechou o ano com um total de R$ 38,8 milhões de reais. E, no entanto, entre setembro e dezembro, o hospital registrou números insignificantes de atendimento de pacientes de Covid – menores do que a Santa Casa, o Hospital da Mulher e o Hospital Metropolitano. Em setembro, por exemplo, o Veredas não teve um único paciente de Covid, seja na UTI, seja na enfermaria, segundo as informações da Prefeitura de Maceió. Em contraponto, num único dia de setembro, dia 15, a Santa Casa tinha seis pacientes internados. Com base nesses números, constata-se que o Veredas encheu os cofres na pandemia e não precisou atender quase ninguém.

O Veredas consegue dinheiro até quando não era para ele, segundo a publicidade. Em 2021, o próprio deputado Arthur Lira, que concentrava todo o poder de distribuição do dinheiro do orçamento secreto, despachou  R$ 10 milhões de reais para o hospital. Curiosamente, o Portal da Transparência informa que o dinheiro tinha outro destino: R$ 7,6 milhões iriam para a Secretaria Municipal de Saúde de Maceió e R$ 2,3 milhões estavam destinados à Associação Pestalozzi de Maceió, que é um centro especializado em reabilitação. O empenho que mandava a verba para essas duas entidades foi cancelado e os recursos foram redirecionados para o Veredas.

Imbatível na captura de verbas públicas, o hospital nunca perde. Quando a ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal, mandou suspender os repasses do orçamento secreto, o Veredas tinha um empenho a seu favor de 8,4 milhões de reais. Com a decisão de Weber, o dinheiro nunca chegaria. Mas, um mês e meio depois, a ministra voltou atrás e reativou as remessas. Em questão de dias, os 8,4 milhões já tinham vencido toda a burocracia e foram transferidos para o Veredas via Fundo Municipal de Saúde de Maceió. Esse foi um daqueles repasses que nenhum político assumiu, mas o fato é que, no primeiro ano de Lira na Presidência da Câmara, 18,4 milhões do orçamento secreto pingaram na conta do hospital.

O Hospital Veredas é uma caixa-preta que muitos órgãos fiscalizadores não fazem questão de abrir, e outros, quando tentam, não conseguem. Em setembro de 2020, o Ministério Público Federal instaurou um inquérito civil depois de receber uma denúncia anônima relativa a repasses federais. O caso pouco avançou até hoje. Em 21 de junho deste ano, um documento do MP reclama da “insuficiência das informações prestadas até então sobre a prestação de contas da aplicação destes recursos, assim como a não publicidade e transparência da destinação dos recursos”. 

A reportagem informa que procurou Pauline Pereira, mas ela não respondeu às tentativas de contato por meio de WhatsApp e e-mail, nem atendeu às ligações.



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