COMPORTAMENTO

Amores em vertigem: como aplicativos de namoro transformam as relações

Elos que ligam pessoas estão mais frágeis, mas os apps podem ser a tábua de salvação de muitos
Por Allan Barros / Estagiário sob supervisão 01/01/2024 - 14:00
Atualização: 30/12/2023 - 08:06

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Relacionamentos de curta duração têm sido comuns na convivência pelos aplicativos de namoro
Relacionamentos de curta duração têm sido comuns na convivência pelos aplicativos de namoro

O terceiro relacionamento da vida de Valeria Salas (moradora da cidade de Lima, no Peru), e segundo virtual, terminou como começou: rápido e surpreendentemente. Uma amizade online de 2 meses que se tornou um amor promissor, porém, fugaz. “Um namoro falido”, assim ela o define, enquanto explicava que, além de tudo, sua saúde mental foi afetada por esse episódio.

A relação da peruana de 25 anos com o crush brasileiro durou 19 horas de um mesmo dia. Com muita relutância, ele a pediu em namoro virtualmente, após se conhecerem pelo Tandem, um aplicativo de aprendizagem de idiomas, que também serve para a formação de relações de amizade e namoro, na prática. Uma espécie de aplicativo de relacionamentos refratário, cujo uso é transformado.

Segundo um levantamento da Happn Brasil, em parceria com a YouGov, tais aplicativos, a exemplo também do Tinder, do Badoo, do Inner Circle, são utilizados por 60% dos brasileiros, e vêm modificando a forma como as pessoas se relacionam. Por vezes, os relacionamentos se tornam mais descartáveis, mas também se tornam possíveis, em um mundo cada vez mais líquido, citando a expressão do sociólogo e filósofo polonês Zygmunt Bauman.

No dia seguinte ao namoro, Valeria se sentia sem energia, tinha dor de cabeça. Para ela, o mais estranho foi o conteúdo da primeira conversa com o ex após o término. Ambos se cumprimentaram como sempre e logo começaram a conversar sobre viagens. Valeria pensou: “como é possível que a gente fale desse jeito como se nada tivesse acontecido?”. Disso se seguiu um dia inteiro de silêncio e depois conversas frias. Até que ficaram sem se falar por uma semana. Hoje, ambos mantêm uma amizade virtual, porém aquele episódio mudou a forma como ela enxerga as relações online.

Um mundo de espectros

Foi uma sequência de eventos rápida que a fez se sentir confusa, ainda mais quando, pouco tempo depois, o 'crush' já estava no Tinder atrás de novas paqueras, como lembra Valeria.“Eu sei que não é o correto, mas depois disso o ghosting passou pela minha cabeça”.

O termo ghosting se refere a quando se está se relacionando com uma pessoa e ela desaparece de repente, como um "ghost”, inglês para fantasma. A pessoa querida simplesmente evapora por entre os algoritmos dos aplicativos de relacionamento.

É uma atitude que Valeria já teve com outras pessoas que não demonstravam interesse nas conversas.

No entanto, o contexto social marcado pelo machismo e o patriarcalismo permitem dizer que "o ghosting tem uma clara marca de gênero que não podemos deixar de considerar. Os homens estão muito mais autorizados a dar ghosting”, explica Larissa Pelúcio, Doutora em Antropologia e Livre-Docente pela Universidade Estadual Paulista (Unesp).

Luiz Oliveira*, servidor público brasileiro de 46 anos, já utilizou o Tinder e o Inner Circle. Ele diz ser muito comum a prática do ghosting nos ambientes virtuais de amizade e paquera. “O ghosting não me surpreende. As pessoas de maneira geral não têm responsabilidade afetiva, até mesmo quando estão em um relacionamento. Já fizeram [ghosting] comigo e eu já fiz com outras pessoas”, confessa.

Larissa Pelúcio explica que o ghosting tem a “cara” do presente. “É uma certa imaturidade que temos de lidar com esses finais. É uma geração que foi poupada dos fins. Temos mais dificuldade de pôr pontos finais nas coisas e os aplicativos ajudam muito nisso”.

Os "fantasmas" do nosso tempo são diferentes, estão em todos os apps e prejudicam as relações. Arte: Natália Sarmento

A prática pode ser proposital, outras vezes não. A fartura de pessoas com quem se conversa nesses apps pode fazer com que um papo se perca dentre tantos outros.

“Existe uma pretensa economia da abundância porque ali [nos aplicativos] tem vários perfis, eu converso com várias pessoas simultaneamente e supostamente eu teria uma possibilidade muito mais alargada de encontrar um parceiro ou parceira que me contemple e que valha todo um investimento”, pondera Pelúcio, refletindo também a respeito do uso dos apps de relacionamento como uma opção meramente econômica, onde escolhe-se bem, antes de se gastar dinheiro com o novo (a) parceiro (a), como em um mercado.

Edilson Carvalho, cientista social brasileiro de 24 anos que vive em Maceió (AL), foi alvo do ghosting no Tinder, e é um exemplo de que quando há tantas opções disponíveis, como em um cardápio, alguém sairá ‘ferido’. “Já sofri bastante. Você se torna mais um na ‘fila’. Me sentia bastante triste e com baixa autoestima”, conta.

Segundo o psicólogo e jornalista Carlos Gonçalves, o ghosting é uma prática que pode ser um agente contra a saúde mental, e gerar ansiedade, “ainda mais diante de um contexto em que estamos cada vez mais dependentes dos smartphones”, não só das pessoas.

A “nomofobia”, ou o medo irracional de ficar sem o celular ou ser impedido de usá-lo, é uma realidade no mundo e no Brasil. Uma pesquisa da consultoria global Digital Turbine apontou que 4 de cada 10 brasileiros não conseguem passar mais de uma hora longe do celular. O Brasil é considerado o país mais ansioso do mundo e o quinto mais depressivo, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS).

Nem tudo são espinhos

Abre-se espaço para questionamentos a respeito da realidade que derivou da existência dos apps de amizade e namoro e das dinâmicas praticadas dentro deles. Alguns podem se perguntar se esses aplicativos fragilizam as relações, se eles são negativos, com práticas como o ghosting. Outros podem se perguntar se eles facilitam os relacionamentos, se são positivos.

A antropóloga Larissa Pelúcio é categórica ao analisar essa realidade. “Os aplicativos não fazem nada. Nós é que fazemos com eles. Eles respondem às nossas angústias presentes, às nossas questões relativas à nova ordem das relações”.

Luiz Oliveira, por exemplo, foi pego de surpresa quando conheceu a atual namorada. Após muitas tentativas dentro dos aplicativos de relacionamento, conseguiu encontrar no Inner Circle alguém que esperava, mas não encontrava, depois de terminar um casamento de 15 anos. Ele estava desacreditado. Mas “foi diferente com ela”, conta. “A identificação foi imediata, o que não é fácil de acontecer”. Mas aconteceu.

Na arena das relações da contemporaneidade, é o amor líquido de Bauman versus o amor romântico. Para muitos, o dia de encontrar o príncipe encantado ou a donzela dos sonhos não chega.

Porém, o ápice da utilização desse tipo de aplicativo, que é esse encontro surpreendente, também aconteceu com Cristina Sampaio, jornalista brasileira de 59 anos. “Foi como achar agulha no palheiro”, é como define sua busca por um amor no aplicativo Badoo.

Cristina entrou nos apps de relacionamento quando tinha 48 anos. Suas amigas não acreditavam que ela conseguiria encontrar alguém. Depois de 2 anos utilizando diversos apps, inclusive pagando caro e tendo algumas experiências desagradáveis, conseguiu o famoso “match” com seu atual marido.

“Diferente das minhas amigas, eu pensava ‘tem tranqueira em todo lugar’. Não vejo diferença para o mundo real. Os apps são um reflexo da realidade”, considera Cristina.

O deslizar para a direita ou para a esquerda nos aplicativos de relacionamento são um começo. Para alguns, o início de uma relação duradoura. Para outros, pode não dar tão certo. Além disso, a saúde mental e a saúde relacional podem ser abaladas.

As relações em apps são como lados de uma mesma moeda. Arte: Natália Sarmento

Nem tudo são flores

“Na minha experiência, sentia que na imensa maioria dos casos dificilmente um vínculo profundo se formava com a pessoa”, contou Edilson Carvalho*, que está em um relacionamento há mais de um ano que foi iniciado fora dos apps.

O mundo dos aplicativos de amizade e namoro é turbulento. É difícil encontrar o par perfeito, mas talvez também não tenhamos pares perfeitos, nem almas gêmeas.

“Estamos nos dando conta de que o amor romântico realmente não consegue mais responder às dinâmicas relacionais do presente”, afirma a antropóloga Larissa Pelúcio. A autora do artigo “A uberização do amor – aplicativos de encontros em cenário tecnoliberal e pandêmico” detalha sobre como o contexto social capitalista vem contribuindo também para a efemeridade das relações.

Ademais, essa alteração na dinâmica das relações, que saem do mundo físico para o mundo virtual, minam a saúde mental justamente devido à grande dependência tecnológica. Muitas vezes, essa ânsia em obter conexões nos apps de relacionamento “pode colocar a saúde em risco. É algo que se percebe em atendimentos clínicos, e que é fruto dessa demanda de usuários que estão sedentos atrás de preencher seus vazios”, alerta o psicólogo Carlos Gonçalves. A terapia psicológica se mostra, portanto, como uma forma de catarse para toda essa realidade.

Ao responder ao questionamento sobre se hoje em dia as relações estão mais frágeis, depois do uso dos aplicativos de amizade e namoro, Gonçalves aponta, de maneira firme, que sim. Os relacionamentos, segundo ele, se inserem em uma lógica observada tanto pelo psicólogo Carl Rogers, quanto por Bauman. O ser humano seria um ser de desejo, por isso, precisamos das relações, que estão cada vez mais líquidas, escorrendo pelas mãos.

“Ao não termos contato direto [nos apps], é difícil entender as emoções do parceiro”, respondeu Valeria Salas, personagem da abertura desta reportagem, ao ser perguntada se os apps de amizade e paquera tornam as relações mais frágeis.

“Nós estamos muito mais ligados ao ter do que ao ser. Estamos nos preocupando muito mais com o que pensarão de nós se não tivermos alguém do lado, se não nos casarmos, se não tivermos uma profissão. Porém, as relações precisam de amor, afeto, cultivo tempo para germinarem, e estamos focados nesse lugar vazio [das relações virtuais]”, explica Gonçalves.

Trecho do 'Poema para você', de Fernando para Eliane. Imagem: Reprodução

Era uma vez...

O casamento dos brasileiros Eliane Medeiros, de 71 anos, e Fernando Medeiros, de 72 anos, parece de conto de fadas, olhando para os dias de hoje. Ambos se conheceram no fim da década de 1960, com 17 e 18 anos, respectivamente. Casados há 47 anos, representam um contraste com um mundo de relações que começam e terminam rapidamente, inclusive os matrimônios. Em 2021, foram 386 mil pedidos de divórcio, o que representou um recorde da série histórica, realizada desde 1984.

Fernando é romântico, sempre foi. Seu caderno de poesias dedicadas à amada é um oásis, uma raridade. A capa tem um desenho de delicadas flores e tem “Lembranças” escrito em letras douradas. A dedicatória diz: “de Fernando para Eliane, com todo carinho e amor”.

Ao abrir as páginas amareladas pelo tempo, logo na terceira página está um “Poema para você”. Um escrito que perdura outras quatro páginas, um sentimento que dura até hoje.

Este é um exemplo do amor romântico, conceito de um tipo de relacionamento que surgiu na Idade Média e se desenvolveu até o século XX, em que Eliane e Fernando nasceram.

O amor romântico está ligado a uma busca constante por alguém. Os dois dos maiores valores desse tipo de amor são “o companheirismo e a fidelidade, para que o indivíduo se torne completo”, como indica o trabalho “Fast-food do amor: relações amorosas contemporâneas baseadas nos aplicativos de relacionamento”, da psicóloga Daiane da Silva.

Segundo Silva, as produções hollywoodianas, na modernidade, fortaleceram ainda mais uma das ideias pertencentes ao amor romântico, de que, não importa o que aconteça, no fim o amor vence tudo e se chega então ao final feliz.

Do amor romântico, passamos à era do amor confluente, que trazia uma busca por trazer “igualdade e liberdade para a relação, uma vez que o outro não mais é visto como a única oportunidade de alcançar a realização pessoal”. Tal forma de amor é decorrente dos movimentos feministas.

De acordo com Silva, estamos na era do amor líquido, definido por Zygmunt Bauman como efêmero, imediatista e com prazo de validade, uma realidade diferente da encontrada por Fernando e Eliane.

Realidade, portanto, de um mundo em constante mudança, também de ordem tecnológica, que traz questões a serem pensadas em um futuro no qual o modo como nos relacionaremos é incerto.

*Nomes alterados a pedido dos entrevistados

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