Protestos na Sérvia geram mais perguntas que respostas e resultados serão 'imprevisíveis'

O que está por trás da onda de protestos na Sérvia? Qual a importância desse pequeno país no sudoeste da Europa para a geopolítica mundial? Quais as consequências da escalada das manifestações e eventual queda de governo para a geopolítica regional?
Para debater essas e outras questões, o podcast da Sputnik Brasil, Mundioka desta quarta-feira (10) entrevistou a doutoranda em relações internacionais pelo Programa San Tiago Dantas e professora de relações internacionais da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Danielle Makio, e o pesquisador do Núcleo de Avaliação da Conjuntura da Marinha e especialista em Leste Europeu e Bálcãs, Lucas Salles.
Tudo começou com o colapso de uma estrutura ferroviária em novembro de 2024, que causou a morte de 16 pessoas desencadeou uma série de protestos pacíficos, mas que evoluíram para confrontos violentos com policiais. Até a sede do partido governista foi incendiada e dezenas de pessoas foram presas.
O presidente da Sérvia, Aleksandar Vucic, defendeu as ações do governo e argumentou que os protestos perderam o caráter democrático, sendo impulsionados por agendas políticas extremas e interferência externa.
A especialista salientou que os diferentes grupos envolvidos nos protestos levantam bandeiras clássicas dos protestos mundiais das últimas décadas, como transparência governamental e combate à corrupção, mas sem se atrelar partidos. Entretanto, a insatisfação popular é explorada por grupos poderosos que representam valores do Ocidente:
"Parte dessa sociedade tem, sim, uma bandeira que diz respeito ao maior alinhamento com o Ocidente [...] existe também, a presença de inúmeros atores ocidentais entre a sociedade, não somente na iniciativa privada, mas também uma série de atores sociais, como as famosas ONGs".
Além disso, ponderou ela, há denúncias revelando que houve financiamento direto de grupos ocidentais para que essas mobilizações ganhassem cada vez mais corpo.
Lucas Salles também avaliou que as manifestações, lideradas sobretudo por jovens e estudantes, são orgânicas e resultado de insatisfação com questões políticas e sociais.
"A Sérvia está mostrando realmente uma juventude bastante engajada que é uma coisa que vai contra as estatísticas até agora", comentou ele ao defender que a crise é mais de fundo interno do que provocada por agentes externos.
O factoide da ameaça russa
Desde o início da crise na Ucrânia, em 2022, o Ocidente tem se mobilizado para evitar que a Rússia consiga aliados para superar as limitações impostas pelas sanções. O governo sérvio se negou a aderir a sanções implementadas pelo Ocidente contra a Rússia o que desagradou a União Europeia e os Estados Unidos.
Ambos lembraram que Vucic também foi criticado por autoridades e a grande imprensa europeias quando aceitou o convite do Putin, para participar das comemorações da vitória da grande guerra patriótica em maio.
A localização geográfica da Sérvia, nos Balcãs, faz com que o país seja foco de disputa por influência das grandes potências regionais, comentaram os estudiosos. Citaram como exemplo, o cruzamento de importantes de transporte como a ferrovia Belgrado-Budapeste, eixo importante de escoamento para o mercado europeu; e a conexão com importantes infraestruturas de óleo e gás.
"A Sérvia também é uma espécie de ponte entre o espaço euroatlântico e o espaço russo, ou russo-eurasiano. Então, para a China, para a Rússia, por exemplo, ela representa, para além dessa importância em termos de transporte, ela representa também um ponto de contato com a Europa Ocidental", disse Makio.
Nesse sentido, ponderaram os entrevistados, o governo da Sérvia tenta se equilibrar em uma balança entre Ocidente e Oriente, o que provoca tensões dentro e fora do país.
Lucas Salles lembrou que durante sua visita à Europa, o presidente chinês Xi Jinping visitou apenas três países: Sérvia, França e Hungria.
"Cada vez mais, o governo vem se desgastando para conseguir manter essa política conciliatória [...]. É de se questionar até onde esse governo vai ter condições de continuar fazendo essas concessões e manter ambos os lados dentro da sua agenda de política externa", comentou a pesquisadora.
'Efeito Kosovo'
Os especialistas destacaram ainda a questão envolvendo Kosovo, motivo de forte polarização entre governo e oposições na Sérvia e transborda para dentro das manifestações.
As tensões perduram há mais de duas décadas, desde a intervenção da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), em 1999, com bombardeios que durou 78 dias.
Em 2004, os albaneses kosovares iniciaram uma campanha de limpeza étnica, instigando a destruição de monumentos e marcos históricos e culturais sérvios e forçando os sérvios a evacuar suas casas, levando-os às áreas do norte da região.
Já em 2008, o Kosovo declarou unilateralmente sua independência da Sérvia. Na época, Belgrado, Rússia e diversos outros países se recusaram a reconhecer a separação.
O tema Kosovo também tem, na opinião de Maika, poder de mobilizar questões identitárias, de segurança e integridade nacional e reordenar coalizões, conciliar uma identidade única e impedir possíveis separatismos.
"Ele traz atalhos para debates socioeconômicos, então muitas vezes o que acontece é que em debates sobre a situação doméstica que dizem respeito à defesa, que dizem respeito à economia, toda vez que o tópico Kosovo entra na mesa, ele tem um peso que diz respeito à soberania do Estado", declarou ela.
'Mais perguntas que respostas'
Lucas Salles, especialista em Balcãs opinou que a atual conjuntura gera mais perguntas que respostas:
"A cada dia se torna uma interrogação cada vez maior, porque a Sérvia tem um histórico já de colaboração estratégica com a Rússia, e eles têm uma questão cultural eslava muito forte, de irmandade eslava. Por outro lado, tem toda aquela questão da Sérvia estar querendo entrar na União Europeia", comentou.
Essa questão cultural está no cerne da fragmentação, expõe Makio. Há grupos que mantém a ideia da Rússia enquanto irmã eslava viva, enquanto outros, em especial o que está na ruas, defendem uma maior ocidentalização do país"
Para tentar contornar a crise social, o governo vem tentando antecipar as eleições. Em uma primeira leitura isso pode favorecer o governo ao se legitimar através dos votos da população que não está nas ruas.
Por outro lado, a tentativa de antecipar pode ser vista como uma forma de buscar resultados melhores enquanto as mobilizações ainda não são se agravaram.
Se a queda do atual governo é uma incógnita, suas consequências são ainda mais imprevisíveis, apontam os especialistas.
"Os próprios movimentos, grupos que estão ali mobilizados nesse contexto têm desacordos muito grandes entre quem eles entendem que deveria vir depois de uma possível queda do regime", disse Maika. "Seria derrubar o governo para instituir uma nova espécie de crise", concluiu a especialista.
Por Sputinik Brasil