BAIRROS DESTRUÍDOS
Braskem virou dona do Sistema Catolé-Cardoso
Empresa pagou R$ 108,9 milhões à Casal, em acordo de indenização confidencial
Um documento inédito e até agora em segredo revela os detalhes de um acordo entre a Companhia de Saneamento de Alagoas (Casal) e a Braskem para indenização e integral quitação do sistema Catolé-Cardoso, no bairro do Bebedouro, ainda em operação mas que a parte sob responsabilidade da Casal será descomissionada. A decisão acontece após o sistema ser atingido pelo afundamento do solo que afetou bairros inteiros na capital alagoana no início de 2018, provocado por décadas de exploração indiscriminada de sal-gema.
Inaugurado em 1952, o Catolé-Cardoso foi, durante décadas, o principal sistema de abastecimento de água potável na capital. Atende a mais de 250 mil pessoas, é um dos três sistemas de abastecimento de Maceió e o segundo em captação superficial: 320 litros por segundo. Os outros são o Aviação (197 litros por segundo) e Pratagy (890 litros por segundo).
Além de captar a água, o Catolé tem estação de tratamento. Está localizado na área de proteção ambiental do Catolé e Fernão Velho, ocupando 2.168,22 hectares e se espalhando por partes de Maceió, Satuba, Santa Luzia do Norte e Coqueiro Seco. O reservatório é abastecido pelas águas do Riacho Catolé.
A Casal e a Braskem acordaram que o valor da indenização pelo crime ambiental que afetou o sistema foi de R$ 108.904.627,03 pago em três parcelas, já quitadas. O acordo foi fechado no final do ano passado e tornou a Braskem dona do sistema.
A Casal será leiloada em 2027. Em fevereiro, a companhia anunciou a rescisão do contrato com o escritório Carneiros Advogados Associados, que atuava em defesa dos interesses da companhia nas ações da Justiça contra a Braskem. Foi este escritório que estruturou o acordo com a empresa. Recebeu R$ 900 mil como remuneração do pró-labore e 10% do valor do acordo: R$ 10,8 milhões. Os dois advogados da Casal também receberam bonificação, de R$ 1,08 milhão.
DETALHES
Dos R$ 108,9 milhões, segundo o contrato obtido pelo EXTRA, exatos R$ 86.096.069,04 correspondem à “reparação integral e suficiente” pelos danos causados ao sistema. E os R$ 22.808.557,99 restantes são a indenização pelos ativos, ou seja, os imóveis, equipamentos e rede de abastecimento de água em rede coletora de esgoto.
Estão incluídos nos imóveis negociados: a adutora do Catolé, o reservatório de água, o ponto de sucção e outro reservatório, o Stand-Pipe.
A barragem que alimenta a estação de tratamento, formada pelas águas do Rio Catolé, ficou de fora da negociação. Em troca, o Casal não poderá alegar danos ou prejuízos futuros com o afundamento do solo afetando sua rede de abastecimento “isentando a Braskem de complementações indenizatórias”.
Outro ponto que chama a atenção: na cláusula 4.1.2, a Braskem diz que o pagamento da indenização não significa uma confissão de culpa, ou seja, “não resulta no reconhecimento (…) de qualquer tipo de responsabilidade cível, criminal ou administrativa pelo fenômeno geológico”.
Na cláusula seguinte, a 4.1.3, a Casal reconhece que o pagamento significa a entrega do sistema Catolé-Cardoso à Braskem “assim que viável”, ou seja, a estatal é que deve promover ajustes e reparos, além da desativação do aqueduto de água bruta e do sistema de cloro e o encerramento das licenças e registros de atividade junto aos órgãos competentes e referentes ao sistema.
Tanto a Casal quanto a Braskem acordaram que os detalhes deste negócio não poderiam vir a público, ou seja, as cláusulas são confidenciais e “a parte que resolver divulgar informações deverá comunicar previamente o fato à outra parte por escrito”.
O EXTRA entende que informações deste tipo não podem ser tratadas como segredos de alcova. Por isso, o interesse público está acima das cláusulas.
Empresas confirmam transação, mas evitam detalhes
A Companhia de Saneamento de Alagoas e a Braskem confirmaram a transação sem, no entanto, entrar em detalhes, incluindo os valores, alegando confidencialidade. A Casal informou que os recursos obtidos serão usados “na implantação de um novo sistema de abastecimento de água, que substituirá o atual Sistema Cardoso”. O local será na área de proteção ambiental Catolé.
“A Companhia de Saneamento de Alagoas (Casal) informa que os recursos obtidos por meio da indenização resultante do acordo extrajudicial firmado com a Braskem serão utilizados na implantação de um novo sistema de abastecimento de água, que substituirá o atual Sistema Cardoso, em Maceió. A Companhia está em tratativas com o Governo do Estado de Alagoas para definir a melhor alternativa técnica e operacional para a implantação dos novos ativos, com o objetivo de garantir mais segurança, eficiência e regularidade no abastecimento à população”, disse a companhia, em nota via assessoria.
A Braskem informou que o Sistema Catolé não será usado para fins próprios “até o descomissionamento pela Casal”.
“A Braskem informa que a Estação de Tratamento de Água (ETA) do Sistema Catolé Cardoso não será utilizada para fins próprios e continuará em operação até o descomissionamento pela CASAL. A Companhia esclarece ainda que o acordo realizado com a CASAL é regido por cláusula de confidencialidade, o que impossibilita o compartilhamento de mais informações”, disse a empresa, também em nota.
Esta operação é semelhante àquela entre moradores e a empresa, envolvendo os imóveis e a evacuação dos bairros. Ou o acordo firmado com a Prefeitura de Maceió, em que a Braskem pagou R$ 1,7 bilhão por danos causados à cidade e, em troca, a empresa assumiu prédios públicos pertencentes ao município nos bairros atingidos pelo crime ambiental.
Nestes dois casos, a Braskem vem realizando demolições destes imóveis e estabilizando o solo, mostrando, na prática, que a empresa trata a área como um empreendimento privado, de destinação ainda desconhecida.
Ano passado, a empresa indenizou o Tribunal de Justiça em R$ 11,1 milhões pelo prédio do 5º Juizado Especial Cível e Criminal de Maceió, que funcionava em Bebedouro, um dos bairros afetados pela extração de sal-gema.
O acordo foi mediado pela Procuradoria Geral do Estado. O dinheiro foi depositado no Funjuris, o Fundo Especial de Modernização do Poder Judiciário. Segundo o Termo de Autocomposição PGE/CPRAC N.º 01/2024, R$ 10,8 milhões foram depositados de uma só vez no fundo como indenização. O restante, R$ 345.731,13, são relativos ao prazo de 30 meses de aluguel dos imóveis provisórios; custos de desinstalação e reinstalação de ar condicionados; além de mudança do local, limpeza dos locais alugados e correção monetária.
Em troca, a Braskem ficou com o prédio do 5º Juizado Especial. Enquanto isso, ações individuais na Justiça envolvendo os moradores dos bairros afetados pela mineração e a Braskem questionam acordos porque os valores pagos foram considerados irrisórios.
Só que decisões mais recentes do TJ alagoano tendem a beneficiar a Braskem, ao manter todos os pontos do acordo assinado entre os moradores e a empresa para desocupação de áreas de risco. Isso significa que a cláusula 14 – a principal e mais polêmica do acordo entre os moradores e a empresa, referente aos pagamentos de terrenos e edificações implicando a transferência deles para a mineradora – também não deve ser questionada no tribunal, apesar da operação ser considerada ilegal e absurda tanto pela Defensoria Pública Estadual quanto pelo advogado Antiógenes Lira, dono de imóvel no bairro do Pinheiro e buscando, na Justiça, impedir alterações no bem.
A Defensoria e o advogado sustentam que a perda da propriedade dos imóveis em benefício da mineradora fere o Código Civil, pois não vincula perda da propriedade em decorrência de indenização por dano.
Tanto a presidência do TJ quanto a 3ª Câmara Cível mostram, em ações diferentes sobre o caso, que após a assinatura do termo de acordo para desocupação de áreas de risco, o beneficiário, neste caso o morador da área de risco, “conferiu quitação irrevogável à Braskem S/A (...) de quaisquer obrigações, reivindicações e pretensões e/ou indenizações de qualquer natureza, transacionando todos e quaisquer danos patrimoniais e/ou extrapatrimoniais relacionados, decorrentes ou originários direta e/ou indiretamente da desocupação de imóveis em razão do fenômeno geológico verificado em áreas da Cidade de Maceió/AL, bem como todos e quaisquer valores e obrigações daí decorrentes ou a ela relacionados, nada mais podendo reclamar a qualquer título, em Juízo ou fora dele”.