XUKURU-KARIRI
Demarcação das terras indígenas entra em fase decisiva
Luta de mais de 150 anos se aproxima da conclusão em Palmeira dos Índios
Após mais de 150 anos de reivindicação, a demarcação das terras pertencentes ao povo Xukuru-Kariri, em Palmeira dos Índios, deve avançar de forma decisiva em dezembro. Segundo o líder indígena Tanawy Xukuru-Kariri, 35 dos 463 proprietários com áreas incidentes sobre o território indígena serão indenizados até o dia 14 de dezembro, data prorrogada pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) para conclusão da avaliação indenizatória.
De acordo com Tanawy, uma nova etapa de pagamentos está prevista para abril de 2026, e o governo federal já dispõe de recursos para garantir a quitação total das indenizações, que serão encerradas após o reassentamento dos pequenos proprietários.
As indenizações contemplam benfeitorias de boa-fé — construções e melhorias realizadas até a publicação da Portaria Ministerial nº 4.033/2010, que reconheceu oficialmente as Terras Xukuru-Kariri com 7.033 hectares (equivalentes a 23.208 tarefas), localizadas na região serrana do município. Entre as benfeitorias indenizáveis estão casas, currais, cercas, açudes, barragens e armazéns.
Assembleia reafirma união indígena e entrega de documento à Funai e à Presidência
No último dia 31, cerca de 800 indígenas Xukuru-Kariri reuniram-se na Aldeia Fazenda Canto, a seis quilômetros do centro da cidade, para discutir o andamento das indenizações e a posse definitiva do território. O encontro reuniu representantes das dez aldeias existentes em Palmeira dos Índios — Mata da Cafurna, Cafurna de Baixo, Fazenda Canto, Monte Alegre, Jarras, Coité, Serra do Amaro, Boqueirão, Riacho Fundo e Serra do Capela.
Durante a assembleia, os participantes aprovaram um documento oficial com as deliberações da comunidade, que será entregue pessoalmente à Funai e à Presidência da República, em Brasília. “Esse direito nosso, que é amparado pela Constituição, será resgatado. O Estado brasileiro vai pagar essa dívida histórica, devolvendo a terra ao seu verdadeiro dono, o índio, primeiro habitante do Brasil”, declarou Tanawy, que está sob proteção do Programa Federal de Proteção aos Ameaçados.
Tutmés Airan: ‘Demarcação é uma reparação histórica’
O desembargador Tutmés Airan, presidente da Comissão de Direitos Humanos do Tribunal de Justiça de Alagoas, participou do encontro e fez um pronunciamento contundente em defesa da causa indígena.
“Se há um povo dono das terras do Brasil, esse povo é o índio. Estamos diante de um ato de resistência cultural e patrimonial. Que a demarcação aconteça como manda a Constituição”, afirmou.
Airan, que esteve presente com um boné de movimentos sociais, classificou o processo como uma reparação histórica, cultural e patrimonial, destacando que a demarcação representa o resgate da dignidade dos Xukuru-Kariri, habitantes originais da região desde quando Alagoas ainda integrava a Capitania de Pernambuco.
Em vídeo divulgado nas redes sociais, o magistrado criticou tentativas de suprimir o adjetivo pátrio “dos Índios” do nome do município. “O que dá grandeza a Palmeira dos Índios é justamente o fato de ser dos índios”, enfatizou.
Tensões e desafios
Apesar do avanço, o processo de demarcação segue gerando tensões com os proprietários rurais, que alegam direito de propriedade e escrituração cartorial. Organizados, eles têm promovido reuniões e articulado apoio político contra a demarcação.
As lideranças indígenas, por sua vez, afirmam ser vítimas de campanhas difamatórias e de discurso de ódio, que visam deslegitimar sua luta por reconhecimento e território.
Enquanto aguardam o cumprimento do cronograma oficial, os Xukuru-Kariri seguem mobilizados. Para eles, a demarcação definitiva dos 7.033 hectares não é apenas uma questão fundiária, mas um ato de justiça e de reparação histórica que reafirma o vínculo ancestral do povo indígena com a terra.
Funai reafirma direito originário do povo indígena
Relatórios antropológicos e base constitucional reforçam que o território pertence tradicionalmente aos índios.
Em meio à fase final do processo de indenização e desintrusão das Terras Xukuru-Kariri, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) reafirmou o direito originário como fundamento jurídico central para a demarcação do território indígena localizado em Palmeira dos Índios. A posição da Funai se baseia em estudos antropológicos, registros históricos e dispositivos constitucionais que reconhecem a posse tradicional dos povos indígenas sobre as terras que ocupam.
O antropólogo Douglas Carrara, autor do Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação da Terra Xukuru-Kariri (2004), destacou que “Palmeira dos Índios foi erguida sobre o antigo aldeamento de índios da nação Kariri”. Segundo ele, até o início da catequese, a população indígena mantinha sua estrutura social intacta, vivendo de forma autossustentável e em equilíbrio com o meio ambiente local.
Origens históricas e raízes culturais
De acordo com pesquisador Clovis Antunes, autor da obra “Wakona-Kariri-Xukuru: Aspectos Sócio-Antropológicos dos Remanescentes Indígenas de Alagoas”, afirma que a fundação oficial de Palmeira dos Índios data de 27 de julho de 1773, quando Frei Domingos de São José recebeu em cartório a doação de um terreno para construir a Capela dos Índios Wákõná-Kárírís, erguida com palha de palmeira — planta abundante na região e que batizou o município.
Pesquisas de campo realizadas por Carrara apontam que a presença Xukuru-Kariri é comprovada por vestígios arqueológicos, como igaçabas — potes de barro usados como urnas funerárias — encontrados em áreas urbanas e rurais de Palmeira dos Índios, como o Alto do Cruzeiro, Serra do Cariri, Igreja Velha, Coité e Serra da Capela. Muitas dessas peças estão hoje preservadas no Museu Xukurus, no centro comercial da cidade.
Demarcação: um processo secular de resistência
A luta pela reparação territorial Xukuru-Kariri é antiga. Documentos apontam que a primeira demarcação em Palmeira dos Índios ocorreu em 1822, correspondendo a 12.320 hectares — uma légua em quadra. A delimitação só foi reconhecida oficialmente em 1861, quando o juiz de Direito de Anadia sentenciou o processo em favor dos indígenas.
Contudo, uma década depois, em 1872, o então presidente da Província de Alagoas, Silvino Carneiro da Cunha, extinguiu todos os aldeamentos indígenas e converteu as terras em domínio público, ato que aprofundou o processo de expropriação e marginalização dos povos originários.
Segundo registros da Funai, a Fazenda Canto, atual sede do território, foi comprada em 1952 para os índios Xukuru-Kariri, com um ágio de 35% sobre o valor de mercado, utilizando recursos do Patrimônio Indígena — provenientes da venda de gado pertencente a comunidades indígenas do Paraná.
No entanto, dos 372 hectares registrados em escritura, apenas 276 hectares foram efetivamente transferidos.
Em 1988, a primeira proposta moderna de delimitação chegou a prever 13.020 hectares, mas enfrentou restrições legais.
A área reconhecida oficialmente pela Portaria Ministerial nº 4.033/2010 do Ministério da Justiça, de 15 de dezembro de 2010, fixou o território Xukuru-Kariri em 7.033 hectares, excluindo a zona urbana de Palmeira dos Índios.
Direito originário e base constitucional
Segundo a Funai, a demarcação das Terras Xukuru-Kariri está amparada no artigo 231 da Constituição Federal, que reconhece aos povos indígenas o direito às terras que tradicionalmente ocupam, garantindo-lhes posse permanente e usufruto exclusivo dos recursos naturais. O artigo 20, inciso XI, define ainda que essas áreas pertencem à União, e não podem ser vendidas nem arrendadas.
O entendimento é respaldado também pelo Estatuto do Índio (Lei nº 6.001/1973), pelo Decreto nº 1.775/1996, e pela própria Portaria nº 4.033/2010, que consolidou o reconhecimento administrativo do território.
Segundo a Funai, o direito originário é absoluto — antecede qualquer título cartorial e não admite contestação com base em registros de propriedade, pois deriva da ocupação ancestral anterior à colonização portuguesa.
Conflito entre posse tradicional e propriedade cartorial
Atualmente, o processo envolve 463 propriedades sobrepostas à área demarcada, com tamanhos que variam de menos de 1 hectare a 275 hectares. O levantamento indica que sete imóveis possuem mais de 100 hectares cada um, enquanto 149 têm menos de um hectare, evidenciando uma ampla diversidade de ocupações.
Josefa Maria dos Santos tem 0,02 hectares de terra no Sítio Candará e Maria Augusta de Melo tem 0,15 hectare no povoado Alto da Canafístula. Já Odete Tenório Torres é proprietária de 275,47 hectares de terra na Lagoa da Tereza e Noé Simplício (falecido) tem duas propriedades; uma no povoado Buenos Aires com 205 hectares e a outra no Sítio Bem-Te-Vi com 202,49 hectares. Marcos Ramos Costa tem 181 hectares no Sítio Riacho Fundo de Baixo, Edmilson Gaia tem 106 hectares no povoado Buenos Aires e Edval Gaia 87,87 hectares no Sítio Panelas. Um hectare equivale a 3,3 tarefas de terra.
Os proprietários questionam o processo, afirmando que a demarcação é “injusta e obscura”. Eles reivindicam a validade dos registros de cartório e a manutenção de suas posses históricas, organizando-se em movimentos contrários à demarcação.
A Funai, o Ministério Público Federal e a Defensoria Pública da União sustentam que a ação não é uma desapropriação comum, mas um reconhecimento constitucional de um direito anterior ao próprio Estado brasileiro.
Para os Xukuru-Kariri, a defesa da terra representa mais do que um ato jurídico — é a reconstrução da identidade coletiva de um povo que resistiu à catequese, à dispersão e à perda de seus espaços sagrados.
Como sintetiza o antropólogo Carrara, “a terra não é apenas o chão físico, mas a base espiritual, cultural e histórica da existência indígena”.
Com o avanço das indenizações previsto para dezembro, a luta dos Xukuru-Kariri se aproxima de um desfecho que pode transformar uma disputa secular em símbolo de justiça e reparação histórica em Alagoas.



