inclusão Social

Militar alagoano aposta no esporte como instrumento de mudança para jovens

Projeto de futebol do subtenente Joel da Silva atendeu mais de duas mil crianças e adolescentes
Por Agência Alagoas 09/02/2025 - 08:08
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Weslley Ferreira / Ascom PMAL
Projeto social já acolheu mais de dois mil atletas das periferias de Maceió e cidades vizinhas
Projeto social já acolheu mais de dois mil atletas das periferias de Maceió e cidades vizinhas

“Da lama ao caos, do caos à lama”. Os versos eternizados na voz de Chico Science remetem a um cenário de pobreza e vulnerabilidade presente nas periferias brasileiras. Mas foi na lama de um campo de barro da orla lagunar de Maceió que um policial militar resolveu subverter a lógica e idealizar um projeto esportivo que mudou a realidade de milhares de jovens de comunidades carentes da localidade. Com o suporte de doações, o subtenente Joel da Silva organiza treinamentos gratuitos e conduz os pequenos na jornada para se tornarem jogadores profissionais de futebol.

Com 20 anos de existência, o projeto social já acolheu mais de dois mil atletas das periferias de Maceió e cidades vizinhas. Os treinos ocorrem nos campos de terra batida que ficam às margens da Lagoa Mundaú. Lá, com a ajuda dos treinadores André e Anilson, o subtenente Joel prepara os pequenos para participar de competições amadoras pelo estado. Os jogadores são divididos em categorias a depender de suas idades, começando com o sub-8 e terminando no sub-17.

Além de gerenciar o projeto, Joel também é responsável, com outros membros, por cuidar da gestão dos campos de futebol da região. Multitarefas, o militar também participa da organização dos torneios infanto-juvenil que acontecem em Alagoas. Para dar conta de tantas atribuições, ele reconhece a importância dos voluntários que contribuem com materiais de treino e ajudam na logística das competições.

“Esses jovens vivem em situação de vulnerabilidade, então, não têm condições de comprar uma chuteira, ou até um uniforme adequado. Todo o material que utilizamos é fruto da doação de colaboradores que apoiam a iniciativa. Até as bolas e os cones usados durante os treinos são doados. Além disso, pessoas como André e Anilson são essenciais para a continuidade do projeto. Eu ainda estou nas ruas, e por vezes a escala de serviço coincide com os dias de treinamento”, destaca o militar.

Do início ao (quase) fim

O amor pelo futebol o acompanha desde a adolescência. Em 2004, ele resolveu criar uma escolinha de futebol chamada Falcão. Na época o valor da inscrição era de dez reais. Os treinos aconteciam às segundas, quartas e sextas. Porém, Joel percebeu que algumas crianças da comunidade tinham vontade de participar das atividades, mas seus pais não possuíam condições financeiras para bancar os treinamentos. Foi aí que ele resolveu abrir as portas do campinho às terças e quintas, e realizar as atividades de forma gratuita. Logo, a iniciativa virou um sucesso na região.

“Eram tantas crianças que na hora de organizar os torneios nem era necessário chamar outras equipes. Só com os atletas de lá já dava para montar uns cinco a seis times. Infelizmente, os custos de gerir o espaço eram altos, e com a falta de apoio financeiro precisei encerrar o projeto ali”, relembra Joel.

Apesar das dificuldades, o então cabo Joel não desistiu da ideia e continuou organizando treinamentos de forma gratuita, dessa vez nos campos abertos na região da Orla Lagunar. A iniciativa começou a colher frutos com a conquista de boas colocações em competições amadoras no estado, incluindo um terceiro lugar no tradicional Torneio de Futebol do Sesi, que reunia centenas de atletas na Vila Olímpica Albano Franco, na Cambona.

A partir de então, Joel foi construindo pontes e conseguiu expandir a iniciativa para outros municípios de Alagoas, incluindo Marechal Deodoro e Coqueiro Seco. A rotina começou a ficar mais acelerada, pois o militar precisava supervisionar e acompanhar as atividades em várias cidades. Durante o percurso para acompanhar um dos treinamentos em São Miguel dos Campos, um acidente quase pôs fim à jornada do entusiasta.

“Estava indo de moto um pouco estressado, pois os meninos tinham dito que o treinador que gerenciava os treinos lá na cidade não os estava tratando bem. Quando estava na descida de uma ladeira que dá acesso ao município, um carro bateu na minha traseira e eu caí na pista, no momento vinha outro veículo que quase passou por cima de mim. Foi um livramento”, relembra.

Ele lembra que tinha acabado de comprar a motocicleta e não sabia como reagir diante da situação. Estava sozinho e sem celular no meio da estrada. Então, o destino mostrou que aqueles que fazem o bem, por vezes, são recompensados.

“Eu não sabia como iria voltar para casa ou pelo menos pedir ajuda. Na época não tinha celular e a rede era muito complicada no local. Comecei a acenar por carona para quem passava pelo local, quando um homem se aproximou e ofereceu ajuda para me levar à Maceió, mesmo sem me conhecer. Nunca esqueci daquela atitude, e anos depois, por coincidência, durante um serviço pelo Batalhão Rodoviário, encontrei aquele mesmo homem em uma blitz. De início ele não lembrou de mim, mas quando contei o relato, demos um cumprimento com o sorriso no rosto”.

O acidente fez com que Joel diminuísse o ritmo das atividades. Além disso, a falta de ajuda financeira das gestões municipais tornou a iniciativa inviável. E, sem a moto, ele não teria como acompanhar de forma adequada os treinamentos que aconteciam no interior. Com isso, ele continuou cuidando das atividades na região do Vergel do Lago, com um número menor de jovens atendidos. Há pouco mais de dois anos, ele registrou oficialmente o projeto com a criação de um CNPJ. Com o nome de “Instituto Orla Lagunar”, Joel agora pensa nos próximos passos.

“Com a formalização do projeto, nós conseguimos lutar pela captação de recursos de forma mais célere e profissional. Até as redes que cobrem as traves vêm de doações. Então, precisamos mudar essa realidade e dar um pouco mais de estrutura para os treinamentos. A ideia é fortalecer a iniciativa e voltar a expandi-la novamente para outros municípios”, planeja o idealizador.

Da lama à glória: sonhar é possível

Assim como a realidade que cerca esses jovens, a carreira de jogador de futebol profissional carrega uma série de desafios e desigualdade de oportunidades. Chegar ao topo é um privilégio alcançado por poucos. Mas, o pequeno Samuel, de 11 anos, se recusa a desistir. Morador do Trapiche, ele divide a casa com os pais e outros seis irmãos, e enfrentou o dia chuvoso e a lama para ter mais um treinamento. Para ele, o sonho é ser um meio-campista, assim como seu ídolo, o argentino Lionel Messi.

O desejo de Samuel pode ser visto por alguns como utopia, porém, ele tem motivos para acreditar. Foi no campo de terra batida do Vergel, sob olhares do treinador Joel da Silva, que um jovem maceioense deu seus primeiros toques na bola antes de despontar para o mundo como um jogador de elite. Roberto Firmino, camisa 9 da seleção brasileira e ídolo do Liverpool, da Inglaterra, foi um dos jovens sonhadores que participaram do projeto social. O profissional chegou a competir em torneios amadores organizados por Joel, até ser descoberto pelo CRB e ir à Europa, onde foi destaque na Alemanha e Inglaterra.

No projeto de Joel, o talento não tem gênero e as meninas também ganham protagonismo em busca pelo sonho de jogar futebol. Uma delas é Layla Sofia, de 15 anos, que divide espaço com os outros jovens durante os treinos. Assim como ela, as jogadoras Ingryd Lima e Brenda Woch também sujaram suas chuteiras de lama no projeto social até alcançarem a profissionalização, sendo destaques nos times do Palmeiras e Grêmio, além de passagens pelo futebol internacional.

Joel sabe que o caminho do sucesso envolve muitas variáveis, mas carrega a certeza de que o esporte ajuda a transformar a realidade desses jovens, dando a eles uma perspectiva de mudança. “O objetivo do projeto não é formar jogadores, mas sim cidadãos capazes de construir uma vida digna e honesta no caminho profissional que escolherem. Já encontrei durante meus serviços vários daqueles que um dia passaram por aqui. Mesmo que não tenham se tornado jogadores, estão desempenhando suas profissões com excelência”, destaca o subtenente.

A educação é um pré-requisito fundamental para que as crianças possam participar dos treinamentos. Todos devem estar matriculados no colégio e devem possuir boas notas. O acompanhamento é feito por Joel e os voluntários junto às famílias dos atletas. Além disso, os jovens devem apresentar uma relação de respeito e obediência com seus pais ou responsáveis.

Galeria dos heróis vivos

Com 34 anos de serviços prestados à Polícia Militar de Alagoas, Joel é a personificação do cuidado e da proteção, características inerentes ao trabalho policial. Nascido e criado no conjunto Joaquim Leão, ele viu de perto a dura realidade das famílias carentes da localidade. Hoje, com 56 anos, ele lembra como o futebol o ajudou a ser um adolescente mais dedicado aos estudos e mais disciplinado.

“Eu sempre fui uma criança muito danada, dava muito trabalho aos meus pais. Diria ser até um pouco rebelde. Quando comecei a jogar futebol e participar da rotina de treinamentos, eu entendi a importância de ter foco e obediência para alcançar seus objetivos. Comecei a ouvir mais meu pai e minha mãe e, mesmo que a carreira no mundo da bola não tenha dado certo, ela me impulsionou aos estudos e à aprovação no concurso da PM, em 1991”, relembrou.

Assim como Joel, outros tantos militares contribuíram e contribuem para a sociedade alagoana. Dentre eles, sargento Luciano Pinto, que gerencia uma ONG que proporciona inclusão e cidadania em Porto de Pedras; o cabo Edvan Alves, que organizou uma campanha de arrecadação de calçados para crianças carentes em Rio Largo; o sargento José Rocha, que salvou um casal de idosos durante um incêndio em Maceió e a guarnição do sargento Ubirajara de Souza que auxiliou em um parto em um veículo na Durval de Góes Monteiro.

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