Conteúdo do impresso Edição 1264

JUSTIÇA SELETIVA

Álvaro Vasconcelos toma posse de terras da Fazenda Brejo Grande

Recurso de famílias despejadas passou mais de quatro meses engavetado no TJ
Por MARIA SALÉSIA 04/05/2024 - 05:00

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CORTESIA
As imagens mostram casa de agricultor destruída após empresário se apossar da área, Pertences dos despejados foram colocados à beira da estrada e a roça de agricultores que também foi destruída
As imagens mostram casa de agricultor destruída após empresário se apossar da área, Pertences dos despejados foram colocados à beira da estrada e a roça de agricultores que também foi destruída

A Justiça de Alagoas foi célere em atender ao pedido do empresário Álvaro Vasconcelos de reintegração de posse de parte da Fazenda Brejo Grande, mesmo com documentos robustos comprovando que as terras localizadas no Benedito Bentes, em Maceió, não lhe pertencem e que há mais de 40 anos são cultivadas pela família do agricultor Vitor Araújo. Porém, esta mesma Justiça foi lenta quanto ao cumprimento de um agravo de instrumento impetrado em dezembro de 2023 e que apenas no último dia 25 foi enviado ao Superior Tribunal de Justiça (STJ). Enquanto a Família Araújo sente-se acuada e injustiçada, embora confiante na análise do agravo em Brasília, Vasconcelos tomou posse das terras da Brejo Grande.

A informação é que o empresário colocou seu pessoal para tomar conta da área para evitar que qualquer pessoa entre na propriedade. Em paralelo, estaria consertando as cercas para colocar o gado no lugar em que algumas famílias tinham suas plantações de mandioca, inhame, frutas e outras culturas de sobrevivência.

Desde 2 de outubro de 2023, data em que o advogado dos parentes do agricultor Vitor Araújo, entrou com o agravo, a expectativa era de que a justiça seria favorável, já que não demorou para Álvaro Vasconcelos ser intimado a apresentar as contrarrazões, o que o fez em 22 de novembro do mesmo ano. Em 11 de dezembro do ano passado, o vice-presidente do TJ, desembargador Orlando Rocha Filho, despachou mantendo a decisão de primeiro grau de se dar posse das terras a Vasconcelos e mandou “subir” para o STJ, como determina a legislação, por se tratar de recurso especial, o que, porém, não aconteceu de imediato. Demorou cinco meses para ser atendido.

A filha de dona Lídia – viúva de Vitor Araújo –, a socióloga Luciane Araújo Duranti, se disse perplexa diante de tudo o que aconteceu. Segundo ela, não é admissível que diante de todas as provas que forneceram, a Justiça tenha dado provisoriamente, e mais uma vez, a posse a Álvaro Vasconcelos.

“Não tenho nada contra esta pessoa, só estou lutando pelos direitos de minha família, que tem que ser respeitada. O senhor Álvaro Vasconcelos se apresentou pela primeira vez naquelas terras onde minha família vivia, cuidava, dava emprego e comida a muita gente e colocou minha família para fora da terra. À época, meu pai tinha 83 anos e mesmo assim o empresário mandou queimar as casas. Como não bastasse, as pessoas que moravam ali, crianças que minha mãe cuidava e mandava para a escola, foram morar nas ruas, debaixo das pontes”, relembrou a socióloga.

Ela afirmou que a família não ganha dinheiro com essa terra, mas para ajudar a muita gente. 

“Tudo que é produzido ali é para ajudar aos que não têm terra para plantar ou é para ajudar pessoas que vivem em situações que não são das melhores. O peixe, a macaxeira, inhame, frutas, tudo é distribuído”.

A filha de Vitor e Lídia mostrou maior indignação ao citar o caso em que, segundo ela, Álvaro Vasconcelos teria mostrado uma pistola para a sua mãe e falou que a Justiça de Alagoas era aquela, apontando para a arma. 

“Minha mãe teve um AVC, meu pai foi levado para uma delegacia como se fosse um delinquente. Se não fossem os verdadeiros amigos e a dignidade de meus pais, nem sei o que teria acontecido. É que quando meu pai entrou na sala do delegado quem estava sentado na cadeira era o Álvaro Vasconcelos. Temos testemunhas, pois o advogado que foi com meu pai viu isso”, comentou.

Aposentada, Lídia Araújo reviveu em 19 de abril deste ano o pesadelo de anos atrás quando assistiu seu chão, seu pedaço de terra ser devastado por “capangas” do empresário. Desta vez, assistiu de longe por estar se recuperando de uma cirurgia e do “desgosto” que passou. Naquela tarde, sob fortes chuvas que castigavam a capital, as famílias da Brejo Grande, mais uma vez, tiveram de abandonar suas casas para cumprir a decisão do juiz substituto da 13ª Vara Cível da Capital, Robério Monteiro de Souza. 

“A gente convive na terra há mais de 40 anos e desde que ele queimou tudo não usamos mais a parte da terra que era da Nelma. Mesmo assim, a Justiça da terra não me ouve. Já a Justiça de Deus é reta e creio que sairemos vitoriosos, isso se eu não partir dessa vez, pois meu coração está com problema”.

A viúva explicou que o problema não é nem por apego à terra, que terra não se leva. 

“É pela falta de respeito no meu país. Meu marido faleceu com 91 anos por conta da situação que ele ficou desde quando o Álvaro mandou prendê-lo e quando chegou lá na delegacia quem estava no gabinete do delegado era o Álvaro. A partir desse dia, até 2015 quando faleceu, não teve mais paz. Dizia que foi desmoralizado, que nunca tinha ido em uma delegacia. Eu já estou sentindo o mesmo caminho porque para mim é uma desmoralização. Estou decepcionada, amargurada”, lamentou.

Com pressão alta, tendo passado por dois acidentes vasculares cerebrais (AVCs), diabetes e outros problemas de saúde, dona Lídia disse que tudo foi adquirido devido a estes problemas com a Justiça. 

“Estou parecendo uma defunta. Mas espero Justiça e confio em Deus que tudo vai dar certo. Isso é uma falta de respeito com o ser humano. Tenho 78 anos e ainda estou passando por essa decepção. O pedaço de terra dele está coberto de mato. Desde 2016 que não coloco meus pés lá”, afirmou a viúva de Vitor Araújo.

E desabafou: “Eu que uso a terra há 42 anos, construímos morada, fizemos açude pegando dinheiro emprestado, meu marido dedicou a vida inteira naquele terreno e não tenho direito a nada e ele (Álvaro) que não comprou a propriedade se apossou com aval da Justiça. Para mim, isso é uma injustiça”.

Luciane Araújo lamentou o fato de um documento de dezembro de 2023 que deveria ter sido enviado a Brasília tenha ficado na “gavetinha” em Maceió por tanto tempo. Outro detalhe que chama a atenção, de acordo com ela, é que o empresário, apesar de conhecer seus pais, nunca falou o nome deles. Se dirigia como aquele homem e aquela mulher. 

“E quando ele fez tudo o que fez, fiquei muito chateada com a nossa Justiça, mas agora estou muito mais ainda porque vejo que eles vão empurrando com a barriga por vários anos para depois fazer a mesma coisa”, comparou ao acrescentar que os herdeiros de Neyde Amorim, a dona original das terras, não lutam contra Vasconcelos por medo.

“Que venha a verdade, que seja feita a justiça. Ele não comprou a terra da Neyde. Ele não tem direito de ficar com aqueles hectares onde minha família estava, onde aquelas pessoas que lá estavam sempre viveram na terra, casaram, tiveram filhos e foram expulsas. Eu fico envergonhada. É essa a Justiça? Até quando, eu pergunto. Onde está o compromisso verdadeiro, aquele juramento que vocês fizeram? Senhores juízes, confio na parte boa da Justiça, sei que existem homens dignos e sérios na justiça de meu Estado. Espero que isso chegue aos ouvidos de quem tem que ouvir, de quem tem coragem de reverter essa situação absurda”, questionou Luciane, a filha de Vitor e Lídia.

Soma-se a isso o fato de que o filho de dona Lídia Araújo, José Roberto, entrou no ano passado com ação de usucapião em relação a gleba que não foi vendida ao empresário Álvaro Vasconcelos e que tramita na 29ª Vara Cível da Capital/Conflitos Agrários, Possessórias e Imissão na Posse.

ENTENDA O CASO

Em 1966 Natália Vieira de Araújo herdou do pai – Júlio Vieira de Araújo – 55 hectares de terras da Fazenda Brejo Grande, que em sua totalidade tinha 220 hectares. Ao falecer, Natália deixou para cada uma das três filhas 18 hectares. Conforme contrato de compra e venda, em 2006, duas das filhas, Nelma e Noélia, venderam cada uma 14,285 hectares de suas partes a Álvaro Vasconcelos. Já a terceira irmã, Neyde Lins de Amorim, faleceu em 8 de agosto de 1997, aos 58 anos, antes da negociação das terras. Como não tinha herdeiro direto, sua parte ficaria com os sobrinhos.

No entanto, Álvaro Vasconcelos argumenta que é dono dos 55 hectares, mesmo o formal de partilha provar que o empresário adquiriu apenas 28 hectares. Além disso, pelas datas, não teria como o empresário ser dono das três partes, já que Neyde faleceu quase 10 anos antes dele adquirir os lotes das duas outras irmãs.

Já Vitor Araújo, trabalhou por 40 anos nas terras pertencentes a Neyde, que não fez qualquer negociação com Vasconcelos, “nem em vida, quanto menos em morte”. E é este espaço que a Família Araújo reivindica.


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