PF vê indícios de que desembargador soltou 'Pigmeu' do PCC em troca de propinas

Por Agência Estado 08/05/2024 - 15:15

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Amparada em relatório da Polícia Federal, a ministra Maria Isabel Gallotti, do Superior Tribunal de Justiça, apontou indícios de que o desembargador Divoncir Schreiner Maran, do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul, se comprometeu a conceder habeas corpus a um chefão do PCC no Estado, Gérson Palermo, o ‘Pigmeu’, antes mesmo de o pedido de liberdade ser impetrado e distribuído a seu gabinete. A PF suspeita que o desembargador recebeu propina e lavou o dinheiro ilícito por meio da modalidade conhecida como ‘gado de papel’ - um filho dele negocia gado e recebeu ‘quantias consideráveis em espécie’.

A defesa de Divoncir Maran informou que não pode se manifestar porque os autos estão sob sigilo.

O desembargador se aposentou no dia 8 de abril ao completar 75 anos de idade. Ele é alvo de investigação por suposta venda de decisão em favor de ‘Pigmeu’, que acumula 126 anos de pena por tráfico de entorpecentes e outros crimes - entre as acusações a que ele já respondeu está o sequestro de um Boeing da antiga Vasp (Viação Aérea São Paulo), no ano de 2000, no Paraná.

Segundo a ministra do STJ, há evidências de que o desembargador sabia que o pedido de habeas corpus seria apresentado em seu dia de plantão no tribunal em 2020. Ao receber o pedido da defesa de ‘Pigmeu’, ele teria dado uma ordem direta ‘para conceder a ordem, mesmo não havendo comprovante da doença alegada e ainda que o réu fosse multireincidente e um dos líderes do PCC’.

As suspeitas que recaem sobre a conduta do desembargador constam de decisão em que a ministra do STJ deixou de analisar o pedido de indiciamento de Divoncir Maran, feito pela Polícia Federal. Maria Isabel Gallotti entende que a competência do caso já não é mais do STJ em razão da aposentadoria do magistrado, no dia 8 de abril, logo depois de completar 75 anos. Às vésperas do aniversário, o ministro Alexandre de Moraes derrubou afastamento que havia sido imposto pelo STJ ao magistrado.

A PF havia pedido autorização à Corte - como é praxe no caso de autoridades com foro - para imputar ao desembargador crimes de corrupção e lavagem de dinheiro. A investigação da PF agora deverá ser analisada por uma Vara Criminal de Campo Grande.

No despacho assinado no último dia 2, a ministra Maria Isabel Gallotti descreve os principais elementos colhidos pela PF ao longo das apurações. Ela deu destaque ao relato de dois assessores do desembargador: Fernando Carlana, o ‘Bob’, ex-assessor-chefe do magistrado, que possuía seu token de assinatura; e Gabriela Soares, que teria redigido a decisão em benefício do líder do PCC, por ordem do desembargador.

Fernando ‘Bob’ narrou que recebeu do desembargador uma ‘tela’ com as informações do habeas corpus e repassou os dados para Gabriela junto da determinação de Divoncir Maran de que o pedido deveria ser acolhido.

Ainda segundo o depoimento, o desembargador citou, na conversa com Fernando’ Bob’, dois precedentes que teriam sido usados pela defesa na petição inicial em favor do líder do PCC . A PF concluiu que o desembargador já teria tido acesso ao documento antes da distribuição a seu gabinete.

‘Gambiarra’ para liberar chefão do PCC

Acessando as mensagens trocadas entre Fernando ‘Bob’ e Gabriela, os investigadores constataram que ela comunicou ao ex-assessor-chefe de Divoncir Maran ‘ter feito uma "gambiarra" para minutar a decisão nos termos orientados pelo desembargador’.

A assessora narrou à PF ter visto hipótese de supressão de instância no caso - quando determinado assunto não foi esgotado por uma instância anterior ao TJ e, por isso, deve ser aguardado o desenrolar do caso.

Ela apontou ainda que não havia comprovação da doença que Gérson Palermo ‘Pigmeu’ alegou ser portador e ressaltou que ele é condenado por tráfico de drogas e usa tornozeleira eletrônica por ordem judicial.

Mesmo com esse alerta, Fernando ‘Bob’ teria dito a Gabriela que assinaria a liminar - ‘sem, aparentemente, importar-se com as observações da colega’, segundo a PF.

"A opinião isolada da assessora não revela nada. A responsabilidade de decidir é do magistrado responsável. Qualquer assessor pode divergir da posição jurídica adotada por seu chefe. No caso concreto, contudo, o desembargador teve acesso à petição inicial do habeas corpus antes da sua distribuição, o que nunca havia acontecido antes", destaca a ministra do STJ em seu despacho.

Isabel Gallotti vê indícios de que o desembargador buscou acesso ao habeas corpus, ‘porque já sabia que seria impetrado’. Esse fato consiste em indício de que o desembargador já se havia comprometido a conceder a ordem", argumenta Maria Isabel Gallotti sobre os achados da PF.

A ministra anotou que, quando os investigadores apreenderam o celular do desembargador, todas as mensagens teriam sido apagadas. A Polícia Federal sustenta que a ocultação de dados robustece a hipótese de que o magistrado ‘atuou movido por vontade livre e consciente de favorecer’ o líder do PCC - que acabou solto.

Indícios de lavagem com ‘gado de papel’

No relatório em que pediu o indiciamento do desembargador aposentado, a PF detalhou como a propina pela decisão teria sido paga ao desembargador, incluindo a suposta participação de um filho do magistrado.

Segundo os investigadores, o filho de Divoncir Maran negocia gado e recebeu ‘quantias consideráveis em espécie, em diversas transações suspeitas, incompatíveis com os ganhos declarados’.

Maria Isabel Gallotti vê ‘indícios típicos de lavagem de dinheiro’ por meio da modalidade ‘gado de papel’.

"O filho do investigado, Vanio Maran, que também era seu procurador para negociações envolvendo rebanho bovino, com poderes para movimentar indiscriminadamente o patrimônio de seu pai, inclusive por transferências bancárias suas e do investigado, atuaria como o principal operador da lavagem de capitais. Teria sido beneficiário, ainda, de recursos oriundos de clientes da atividade rural do desembargador", diz a ministra, amparada na investigação da PF.

A rediscussão sobre o foro privilegiado no STF

Ao seguir o parecer do Ministério Público Federal e remeter o caso para uma das Varas Criminais de Campo Grande, a ministra Maria Isabel Gallotti fez referência à rediscussão, pelo Supremo Tribunal Federal, sobre o foro por prerrogativa de função.

O julgamento sobre o tema está suspenso por um pedido de vista do ministro André Mendonça, mas já há maioria para ampliar o foro, mesmo após autoridades terem deixado o cargo e não mais estarem exercendo a função com tal status.

A ministra do STJ ressalta que a discussão sobre o tema no STF não foi concluída, alerta para eventual revisão de posições e também cita a possibilidade de se passarem meses até que a Corte máxima fixe um entendimento.

A ampliação do foro poderia justificar o retorno do inquérito sobre o desembargador Divoncir Maran, agora em primeiro grau, ao Superior Tribunal de Justiça.

A avaliação da ministra relatora é que a investigação não poderia ser paralisada e, portanto, deve ser aplicada a posição do STF ainda em vigor, que implica no declínio de competência.

Segundo a ministra, essa movimentação não gera risco de qualquer nulidade do processo, considerando que todos os votos já proferidos pelos ministros do Supremo sobre o tema ressalvam que serão preservados ‘todos os atos praticados pelo STF e pelos demais Juízos com base na jurisprudência anterior’.

Ministra nega indiciamento de outro desembargador

A Polícia Federal também havia pedido o indiciamento de um outro desembargador, Marcos Brito. A PF solicitou a manutenção do inquérito até sobre Maran no STJ em razão do foro de Brito por prerrogativa de função ainda estar em vigor.

A ministra, porém, não viu ‘indícios de autoria e de materialidade que apontem a prática de crime, até o presente momento’, por parte do desembargador Marcos Brito.

Segundo o Ministério Público Federal, ‘não há elementos que infiram a relação do desembargador (Brito)’ com a suposta venda da decisão ao líder do PCC.

COM A PALAVRA, O DESEMBARGADOR DIVONCIR MARAN

A reportagem do Estadão entrou em contato com a defesa do desembargador aposentado Divoncir Maran, do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul. A banca disse que não iria se manifestar em razão do sigilo dos autos.


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