Usina pejou
O imaginário social alagoano não poderá ser desligado do aceiro do engenho, das dinâmicas de organização da vida no entorno da usina e seus mecanismos de inserção na subjetividade. Seja com louvor, temor ou pudor, talvez até horror, as sombras e clarificações desse passado estão presentes no que somos, enquanto povo oriundo do partido de cana, filhos bastardos do sistema desigual que adoça e amarga nossas memórias coletivas.
Quando a usina pejava, os rostos dos pais de famílias se acabrunhavam. De acordo com o dicionário da língua portuguesa, pejar significa parar de moer, entre outras formas de sentido a depender do uso regional do termo. No norte alagoano significava o corte no trabalho, o desemprego massivo, a ausência da carne verde na mesa nos dias de domingo.
Apesar de ser um território antigo quando evocamos as lides de sobrevivência dos povos que originalmente cultivaram o solo fértil da zona da mata e praieira, o litoral norte alagoano foi castigado com o desdém arcaico dos donos da terra e sentiu o peso do Engenho Buenos Aires nas políticas de exploração de Cristóvão Lins. A rudeza segurou os relhos do progresso. A curta expectativa de vida fazia da juventude uma condição de força necessária à moenda, o casamento também acontecia muito cedo, pois os corpos jovens tanto reproduziam a mão-de-obra futura como a riqueza do patrão. Tinha muita terra e poucos donos, e eles precisavam de braços alheios para trabalhar.
“Há muito tempo atrás, por ali foi inventado o latifúndio, mas a maioria crê que já nasceu feito. Esse se desdobrou em extensos canaviais, e a esperança virou flor minguada. Hierarquias surgiram, classificações se aplicaram, e ele domesticou o homem: pelo corpo entrou na alma. Com mão pesada nela se aninhou”, diz o livro Etnotrancoso alagoano: colóquios não autorizados, trabalho autoral.
Antes da redemocratização, quando tudo era mais contido e o medo de viver livrava de morrer, os bueiros da traquitana industrial a todo vapor expeliam fumaça branca e marrom, enquanto seu interior queimava a matéria-prima do canavial. A criançada deixava de lado o coco com açúcar no quengo, e podia se deliciar com nacos de pães e biscoitos duros, e o luxo de levar moedas para a escola permitia que comprassem pastel de vento com flau sabor morango, na certeza de que em casa a mãe estaria a cozinhar um almoço com cozido de carne.
Essa imagética quase romântica mostra a vitória dos empregados sazonais do interior alagoano, que nos plantões noturnos eram recolhidos pelo “cata-corno” (espécie de caminhão com teto) para fazer vibrar o peso do soldo na venda e na feira no final de semana. Sua compensação. Seu quinhão. Tudo para ser aproveitado na hora, sem nenhuma medida de acumulação.
No final da safra, o cheiro suado da miséria voltava a rondar. O apito longo e triste anuncia o final de mais um capítulo de emprego porque a usina sempre volta a pejar.
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do EXTRA