Conteúdo do impresso Edição 1264

ARTE E POLÍTICA

Madonna celebra 40 anos de luta contra o falso moralismo

Hoje com 65 anos, cantora quebrou tabus e tornou menos difícil o caminho para artistas novatas
Por JOSÉ FERNANDO MARTINS 04/05/2024 - 05:00

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Reprodução/redes sociais
Madonna faz show histórico neste sábado no Rio
Madonna faz show histórico neste sábado no Rio

Para os leigos em cultura pop, em leitura rápida e sorrateira, a cantora Madonna pode parecer apenas mais uma diva da música superficial norte-americana. No entanto, isso está bem longe de ser verdade. Diferentemente de muitas artistas fabricadas nos Estados Unidos, Madonna desafiou gravadoras lançando tendências próprias e mexendo com a sociedade durante seus 40 anos de carreira. Sim, ela fez e ainda faz política. E neste sábado, 4 de maio, a artista irá encerrar a Celebration Tour em show gratuito nas areias da praia de Copacabana, no Rio de Janeiro.

O concerto é autoexplicativo, uma autocelebração das quatro décadas de trabalho e de muitos tabus desconstruídos. É um nome que estará ao lado de Elvis Presley, The Beatles, Tina Turner, Michael Jackson, entre outras grandes estrelas da música.

Democrata declarada, no Brasil seria chamada de petista e comunista pelos bolsonaristas. Foi excomungada na Igreja Católica, difamada por moralistas e boicotada nas rádios e TVs no próprio país. Sempre foi ativista contra a extrema direita de Donald Trump e também até contra Jair Bolsonaro. Mas Madonna começou a incomodar bem antes, lá no início dos anos 80. No entanto, para entender melhor suas convicções, é necessária uma rápida viagem sobre sua origem.

Nascida no dia 16 de agosto de 1958, em Bay City, no Estado de Michigan, Madonna Louise Veronica Ciccone é a terceira de seis filhos, a primeira mulher da prole. Seus irmãos mais velhos são Martin e Anthony e seus irmãos mais novos, Paula, Christopher e Melanie. Era a filha de um casal composto por um pai de descendência italiana, Silvio Ciccone, e mãe de origem franco-canadense, Madonna Fortin, essa que morreu aos 35 anos de idade de câncer nos seios. 

Com a morte da mãe, a cantora, aos 5 anos, teve que assumir as tarefas domésticas de casa, até seu pai se casar novamente. Se afeiçoou pela dança, inclusive chegando a ser líder de torcida, a única que não raspava as axilas. Querendo fazer carreira nos palcos como dançarina, chegou a Nova York, aos 20 anos, em 1978, com US$ 35 no bolso. Estudou no estúdio da coreógrafa Martha Graham, mas viu mesmo que seu caminho era a música. Formou banda tocando bateria e guitarra e fazendo vocal quando necessário. 

Chegou até fazer backing vocal para uma música do roqueiro Ozzy Osbourne, do Black Sabbath. Conseguiu gravar as próprias demos com DJs que conhecia em boates até conseguir um contrato com uma gravadora, que lhe deu a confiança de gravar um álbum sem muita produção. Madonna teve que se virar e compor as próprias músicas. Com sucesso razoável, ganhou prestígio ao gravar o segundo álbum intitulado Like a Virgin, em 1984. O resto é história.

AIDS E RELIGIÃO

A artista se colocou na linha de frente contra “os monstros do patriarcalismo” logo no começo de sua longa — e ainda presente — carreira. Com os movimentos feministas da década de 1970, Madonna pôde explorar sua liberdade sexual de maneira mais ampla. Ainda assim, ela foi responsável por gerar inúmeras discussões e polêmicas. 

Os crucifixos, por exemplo, se misturavam a acessórios presos nas cinturas. Os corpetes deixaram de ser roupa íntima e viraram trajes de rua. Isso na era do presidente conservador Ronald Reagan. Viu a aids levar diversos amigos que conheceu em clubes e nas ruas de Nova York, alguns ilustres, como o artista Keith Haring e o fotógrafo Herb Ritts. Se tornou ativista pela causa LGBTQIA+ chegando a visitar diversas vezes pacientes em fase terminal pelo vírus HIV, além de financiar pesquisas. Ela conta que uma vez, ao ir a um hospital ainda nos anos 80, parou ao lado de um leito de um paciente já tomado pela demência e cegueira. 

“Ele me disse: mãe, que bom que está aqui! Obrigado por vim se despedir de mim. Eram centenas de pessoas morrendo, todo dia acordava e ficava sabendo de algum amigo ou conhecido que tinha morrido”, lembrou durante um dos shows da Celebration Tour.

SEXUALIDADE

“Em ‘Justify My Love’, ela faz uma reafirmação da multiplicidade sexual e desejo humano. Em ‘American Life’, ela ironiza o estilo de vida norte-americano, baseado em consumo e a política de guerra. Já em ‘God Control’, de seu disco ‘Madame X’, ela cria uma narrativa anti-armamento ao mesmo tempo em que faz homenagem ao Studio 54”, conta o pesquisador e filósofo Ali Prando. Crescendo em Michigan, Bay City, a jovem Madonna teve contato desde cedo com imigrantes latinos, afro-americanos, italianos e pessoas da classe trabalhadora no geral. Foi na sua adolescência que a cantora também conheceu Christopher Flynn, “o primeiro de muitos homens gays com o qual ela teria contato e produziria arte”, conforme Prando. “Antes de ser cantora ou compositora, acredito que os maiores trunfos de Madonna são o fato de que ela é uma excelente curadora de arte”, explica o filósofo. O corpo da artista funcionaria como um quadro branco em que colaboradores estéticos podem dar sua contribuição, de maquiadores a coreógrafos, produtores musicais a cineastas. “Madonna passou por tudo isso na época dela, ela abriu os caminhos para a minha geração chegar”, já declarou a cantora Christina Aguilera.

MACHISMO E ETARISMO

“Ainda hoje, existe um forte estereótipo que cerca as representações de mulheres: elas são sempre representadas enquanto santas ou putas, vilãs ou mocinhas, sempre numa lógica bastante binária que empobrece os debates de gênero”, diz o pesquisador. “Após a geração Cher, a gente tem a geração Madonna, uma geração que começou a despertar para a diversidade. A Madonna já trazia isso muito na cabeça dela, nos álbuns que ela lançava, nas músicas. Ela trazia questões sobre LGBTs, sobre racismo, sobre empoderamento da mulher na sociedade. Mas nesta época tudo era muito reprimido. Tanto é que Madonna foi escorraçada por anos e anos porque era muito combativa. Mas ela abriu uma porta”, destacou a drag queen Lorelay Fox. Em sua carreira, Madonna levantou questões sobre gravidez na adolescência e aborto, simulou masturbação durante apresentações, evidenciou a figura de um Jesus Cristo negro, falou sobre morte e aids, relações familiares, homossexualidade e criticou a “vida americana”, fez campanha para democratas, se posicionou contra guerras. E hoje, aos 65 anos, enfrenta outro tabu: o da idade, ao receber críticas que está ultrapassada, velha, deformada, plastificada e sem valor. Mas como a própria diz: “As pessoas dizem que eu sou tão controversa, mas acho que a coisa mais controversa que já fiz é permanecer aqui”. Sim, ela está aqui!

SERVIÇO

O show The Celebration Tour in Rio será exibido neste sábado, dia 4, pela TV Globo após Renascer e pelo Globoplay e Multishow. Madonna deve ser apresentar das 21h35 às 23h45.


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