FAZENDA BREJO GRANDE

Família é expulsa de propriedade rural em benefício de Álvaro Vasconcelos

Empresário vai tomar posse de terras que nunca comprou; juiz deu prazo de 5 dias para desocupação
Por Maria Salésia 19/04/2024 - 14:21

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Amigas de Dona Lídia ajudam na retirada dos pertences
Amigas de Dona Lídia ajudam na retirada dos pertences

“Estou operada em casa e mandei tirar tudo que tem lá, que o juiz só deu cinco dias de prazo. É mais uma verdade de Álvaro Vasconcelos que em 2006 me disse que a Justiça de Alagoas era o bolso dele. E hoje, 18 anos depois, está provando que a nossa justiça é falha. Ele compra tudo nessa terra, mas não compra personalidade e a palavra de Deus. Estou saindo, mas ainda clamo por justiça”, o desabafo é de Lídia Araújo, viúva de Vitor Araújo, que há mais de 40 anos cultiva parte da Fazenda Brejo Grande, em Maceió.

E foi debaixo da chuva forte que castiga a capital alagoana que na tarde desta sexta-feira, 19, as famílias deixaram o terreno. De casa, sem condições de acompanhar de perto toda a movimentação, dona Lídia lamenta a injustiça. Com voz embargada, a viúva de Victor Araújo diz que pediu para arrancar o inhame, mesmo sem estar em tempo de colheita. Contou com ajuda de amigos para “tirar tudo” e não sabe o que fazer e qual o destino de algumas pessoas que vivem no sítio.

“São crianças, animais, o açude dos peixes, a lavoura e toda uma vida de dedicação e agora o Álvaro vai botar o gado dentro. Acabar com tudo. Esse povo vai para abrigo, grotas, onde achar lugar. Ordem judicial tem que ser cumprida”, reclamou um amigo que foi ajudar na retirada. E o que dizer do relato de uma senhora que sempre viveu no lugar e está sendo expulsa. “Eu nasci e me criei aqui nessa grota com minha família. Plantei roça, cuidei e agora vou ter que sair daqui sem saber para onde vou”, lamentou dona Cícera.

Dona Josefa completou: “Tenho aqui minha mãe, meus irmãos e meus filhos. Plantamos roça com meu marido e agora estamos nessa situação sem ter para onde ir, como viver”.

Com sacos de roupas na cabeça e nas mãos, mochilas com poucos pertences e o olhar perdido de quem só tinha a terra como suporte, essa gente deixa para trás animais de estimação, as roças de onde retiravam os alimentos, os cachos de bananas à espera do tempo para colher. As lágrimas se misturam a chuva, a pequena flor amarela do campo se despede de sua gente. Sua maior riqueza, o pedaço de terra, é arrancado. De futuro apenas a incerteza. O medo

Toda essa pressa em deixar o lugar que cuidou por mais de quatro décadas tem um motivo. Na quinta-feira, 18 de abril, o juiz substituto da 13ª Vara Cível da Capital, Robério Monteiro de Souza, decidiu pela reintegração de posse ao empresário Álvaro Vasconcelos.

Vale ressaltar que Vitor Araújo faleceu, mas a família reivindica a posse da terra mediante ação de usucapião.

Entenda o caso

Há mais de 40 anos a família do agricultor Vitor Araújo trabalha em uma área de terra da Fazenda Brejo Grande, mas em 2006 precisou devolver as terras arrendadas após Álvaro Vasconcelos comprar parte pertencente a algumas herdeiras da fazenda. Desde então, a luta é pela permanência nos 27 hectares que pertenciam a Neyde e o empresário insiste que é dono.

Em sua totalidade, a propriedade rural conta com cerca de 200 hectares e pertence a vários herdeiros. Alguns donos venderam suas partes a Álvaro Vasconcelos, outros, no caso a Neyde, não teria como negociar já que estava morta.

A viúva de Vitor Araújo, Lídia Araújo, conta com riqueza de detalhes que Neyde Lins de Amorim faleceu em agosto de 1997, aos 58 anos, sem deixar filhos e nem cônjuge. Não vendeu sua porção e somente em 2006 o empresário adquiriu cerca de 80 hectares da propriedade.

Foi neste mesmo ano que a família de Vitor Araújo vivenciou o maior pesadelo da vida. Segundo dados do processo, o empresário entrou com ação de reintegração de posse reivindicando toda a área da fazenda. Mesmo com provas robustas de que ele era dono apenas de parte da área, o juiz Pedro Cansanção concedeu liminar e retirou a família Araújo das terras.

O clima de terror tomou conta de toda a área. De acordo relato da viúva de Vitor Araújo, Álvaro “mandou tocar fogo nas casas das pessoas humildes que moravam no lugar, queimou as lavouras das roças dos agricultores e expulsou as famílias da área”. Dona Lídia confirmou em entrevista anterior ao EXTRA que o triste episódio nunca saiu de sua memória.

E relembra que era início de noite, umas cinco e meia da tarde com chuva, frio e vento forte. Todos se recolhiam em suas casas, quando de repente aquele lugar calmo,que transmitia paz, foi invadido por carros de polícia. O fogo logo se alastrou por todos os lados. Correria, choro de crianças e mulheres completaram aquele cenário desolador e sombrio. Sem piedade ou dó, famílias de trabalhadores foram jogados nas ruas e na miséria. Nunca mais os poucos resistentes tiveram sossego. Muitos se perderam nas drogas e ruelas próximas ao lugar.

A história da divisão de terras teve início em 1966 quando Natália Vieira de Araújo herdou do pai (Júlio Vieira de Araújo) 55 hectares de terras da Fazenda Brejo Grande, que em sua totalidade tinha 220 hectares. Ao falecer, Natália deixou para cada uma das três filhas 18 hectares. Conforme contrato de compra e venda, Nelma e Noélia venderam 14,285 hectares de suas partes ao Álvaro. Já Neyde Lins de Amorim faleceu em 1997, antes da negociação das terras.

Álvaro Vasconcelos argumenta que é dono dos 55 hectares, mesmo o formal de partilha provar que o empresário adquiriu apenas 28 hectares.

Como há alguns anos, a cena se repete. A tarde é chuvosa, as famílias saem em retirada com medo de nova invasão, de novos momentos de terror. A tarde fria de 19 de abril de 2024 não sairá da mente dessa gente trabalhadora.


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