colunista

Elias Fragoso

Economista, foi prof. da UFAL, Católica/BSB, Cesmac, Araguaia/GYN e Secret. de Finanças, Planej. Urbano/MCZ e Planej. do M. da. Agricultura/DF e, organizador do livro Rasgando a Cortina de Silêncios.

Conteúdo Opinativo

O Nordeste não quer esmolas, quer respeito — e almeja crescer

04/05/2025 - 06:58
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Há séculos, o Nordeste carrega a ferida aberta da discriminação. Essa cicatriz histórica foi forjada no declínio dos barões da cana nordestinos e na ascensão de seus pares do café no Sudeste. No alvorecer do século XX, um pensamento perverso ganhou força no país: o cientificismo, propagado por figuras como o eugenista Renato Kehl, disseminou teorias racistas e deterministas. O nordestino foi injustamente descrito como um ser degenerado, quase símio, um entrave ao progresso nacional.

Essa ideologia nefasta, amplamente veiculada em periódicos da época, sedimentou um imaginário depreciativo que ressoa até hoje em comentários pejorativos, piadas de mau gosto e estereótipos limitantes por todo o Brasil. A seca, fenômeno natural, foi manipulada para estigmatizar a região como intrinsecamente dependente de auxílio federal. A migração forçada para o Sudeste, impulsionada pelo desemprego regional, levou os "sudestinos" não apenas a marginalizar, mas também a culpar o "retirante" pelos problemas urbanos. Essa persistente e cruel "razia" apenas perpetuou os preconceitos negativos sobre o Nordeste e sua gente.

Lamentavelmente, essa anomalia persiste, embora agora de forma mais sutil e dissimulada. Quando um autor de novelas afirma, com surpreendente desenvoltura diante de um público de atores nordestinos que integrarão sua próxima obra, que sua criação repetirá todos os clichês sobre o Nordeste e seus habitantes, ele o faz impunemente. Como se esse infame clichê não carregasse consigo sérias implicações negativas e depreciativas.

Diante dessa perspectiva enviesada, dessa lente que distorce a rica e inegável contribuição da região para a construção desta nação, resta-nos denunciar o tecido em decomposição que deságua em estereótipos, obscurecendo a verdadeira face do Nordeste: uma região de enorme potencial, que pulsa com talento e recursos.

É inegável que a narrativa simplista dos discriminadores ignora a monumental contribuição da região para a identidade e o desenvolvimento do Brasil. Na literatura, legados imortais de Graciliano Ramos, Ariano Suassuna e Jorge Amado; na música, a genialidade de Luiz Gonzaga e Gilberto Gil; e nas artes, a expressividade de mestres como Vitalino Pereira, apenas para citar alguns.

A ciência nordestina legou ao Brasil César Lattes na física nuclear e Manuel de Abreu na radiologia; Rachel de Queiroz marcou a literatura e o engajamento social. A engenharia de Mário Leal Ferreira impulsionou infraestruturas cruciais, e Eliseu Alves de Melo revolucionou a agricultura tropical com a Embrapa. Talentos contemporâneos como Luciano Camilo Alexandre na NASA, Geoberto Espírito Santo na energia e gás, Wyctor Herysson nas renováveis e Silvio Meira na tecnologia da informação demonstram a contínua capacidade inovadora da região.

No campo dos negócios, exemplos de portentos regionais em diversas áreas não faltam. O Hapvida, um dos maiores planos de saúde do Brasil, nasceu e se fortaleceu no Nordeste. Outro caso emblemático é o do Grupo Petrobahia, gigante na distribuição de combustíveis, que expandiu suas operações da Bahia para todo o país, impulsionando a economia e gerando empregos. No setor de tecnologia, empresas como a In Loco, com suas soluções inovadoras em geolocalização indoor, mostram o potencial criativo e a capacidade de competir globalmente a partir de nossos polos regionais.

A pujança do agronegócio se manifesta de forma expressiva no polo Petrolina/Juazeiro, celeiro de produção de frutas tropicais de alta qualidade que abastecem o mercado interno e externo, e que precisa ter seu modelo replicado, corrigindo os erros dos últimos 40 anos. Ceará e Rio Grande do Norte também se destacam no agronegócio de ponta. A Bahia abriga o polo petroquímico essencial para a indústria nacional.

E em Pernambuco, o Porto Digital se consolidou como um ecossistema de inovação e tecnologia, atraindo investimentos e talentos de todo o país. Complementam esse cenário o Complexo Industrial e Portuário de Pernambuco e o Complexo Industrial e Portuário de Pecém, no Ceará.

Todos esses exemplos irrefutáveis demonstram que, com visão estratégica e recursos bem direcionados para áreas vitais e gestão eficiente, é possível construir negócios de sucesso com impacto nacional e até internacional na região. Além de sua riqueza cultural e do talento de seu povo, o Nordeste é abençoado por uma natureza exuberante e diversificada, por suas grandiosas manifestações culturais como as festas juninas e o carnaval, por sua culinária rica e diversa, por seu potencial energético (solar e eólico), sua biodiversidade única e, acima de tudo, pela resiliência e inteligência de seu povo. Este Nordeste pujante reúne os ativos estratégicos de maior potencial para o futuro do Brasil.

É imperativo para ele crescer, enfrentar e superar a persistência de um modelo discriminatório, cujos recursos alocados repetem a mesma lógica equivocada dos primórdios do século XX, ignorando as prodigiosas nuances da região.

Perpetuar de forma negligente a alocação de recursos orçamentários brasileiros sem critérios técnicos transparentes, que desconsideram os múltiplos "nordestes" dentro do Nordeste e não visam a redução das desigualdades históricas, é um erro crasso. Ou, talvez, uma manobra astuta daqueles que detêm o poder de influenciar a elaboração da peça orçamentária nacional, "montada" para atender a interesses paroquiais, desviando-se de sua finalidade de indutor do crescimento regional.

O atraso regional, infelizmente, tem relação direta com alguns dos bem-intencionados "ídolos" da economia regional a partir dos anos 1960. Eles tiveram a oportunidade de transformar o status da região, mas falharam. Um exemplo é a visão seminal de Celso Furtado que, embora pioneira ao desnudar as raízes do subdesenvolvimento regional, careceu de uma estratégia robusta para confrontar a dinâmica da política centralizadora que sempre obstaculizou a autonomia de desenvolvimento do Nordeste. E, especialmente, caracterizou-se pela enorme frustração dos planos grandiosos que idealizou.

As abordagens dos seus subsequentes, repetindo a fórmula da dependência federal, não apresentaram mecanismos inovadores para alterar a relação assimétrica entre o Nordeste, as demais regiões e o governo federal. A região, assim, viu suas esperanças de transformação serem repetidamente frustradas por iniciativas que, apesar de seus méritos teóricos, não conseguiram romper o ciclo de subordinação e desigualdade. O Nordeste continua pobre e subdesenvolvido.

Chegou o momento de romper com esse ciclo vicioso. É preciso encarar essa realidade e deixar o passado no passado. É hora de pensar no futuro de nossa região de maneira inovadora, disruptiva e efetiva. Abandonar a lógica assistencialista que nos aprisiona há séculos e entender que a solução do Nordeste reside no próprio Nordeste e em seus habitantes. Não há soluções mágicas para impulsionar o crescimento regional, mas é possível crescer, até mesmo de forma acelerada.

Outros, em situações mais precárias, já o fizeram. Japão, Coreia do Sul, Indonésia, Malásia, Hong Kong e, em uma escala diferente, a China, levaram cerca de quatro décadas para superar a miséria e alcançar o desenvolvimento. Com as ferramentas digitais atuais e a inteligência artificial, podemos fazer isso em muito menos tempo, talvez em duas décadas.

A rota a seguir é a contribuição do Instituto Nordeste para a virada de chave tão necessária que a região precisa dar. Nada de espetacularismos, nada de grandiloquências, nada de mega obras faraônicas. Nem tampouco nada do arroz com feijão, o tão conhecido mais do mesmo, praticado há séculos por aqui e que nunca levou a uma arrancada da região.

Sua contribuição é produto de muito estudo, muita pesquisa, muita expertise para desenhar um modelo prático, exequível e de enorme impacto regional. Que passa a) pela universalização e foco total na elevação da qualidade da educação básica (os recursos atualmente disponíveis para o setor, embora mal empregados, podem financiar essa transformação) e, sequencialmente, no ensino médio e no ensino superior, num prazo médio com impactos reais sendo sentidos a partir do segundo ano da operação do projeto; b) por uma uma virada radical no agronegócio em áreas com potencial de resposta rápida a incentivos tecnológicos de produção (possível também via importação de mão de obra especializada, tecnologia e serviços industriais 5.0, que temos capacidade de absorver rapidamente); c) a disseminação em todo o Nordeste de projetos e ações de alta efetividade e sucesso comprovado já em execução, para irradiar o crescimento (esses projetos operam de forma restrita por falta de recursos, incentivos e políticas públicas que os coloquem em destaque); d) o apoio à inovação e ao desenvolvimento de pesquisas em áreas de ponta da IA; e, sim, o apoio aos grandes grupos empresariais regionais para alavancar o desenvolvimento (como os senhores acham que surgiram Toyota, Mitsubishi, Honda e tantos outros portentos globais em países em situação pior que a do Nordeste?).

Para trilhar esse novo caminho, é preciso mudar o rumo da conversa.

São necessários projetos bem elaborados nessa direção (que ainda não existem), propostas que comprovem seus retornos sociais e/ou econômicos (também inexistentes), gente qualificada para executar os projetos e gerir o processo (que também falta) e recursos remanejados diretamente para os projetos finalísticos, sem a intermediação da burocracia estatal que consome 70% dos montantes em empreguismo e corrupção.

É preciso também abandonar a lógica assistencialista e propor ativamente a revisão do modelo orçamentário brasileiro, redesenhando e aperfeiçoando seus mecanismos de alocação de recursos. É imperativa a criação de instrumentos inovadores com metas claras, indicadores de desempenho e mecanismos robustos de acompanhamento, avaliação e transparência.

É necessária a priorização política para a mudança. Mas também é crucial organizar as forças empresariais e as vozes mais influentes da região para criar um ambiente propício aos avanços, que podem inicialmente ser pontuais e ganhar força com as respostas que gerarem e convencerem os tomadores de decisão das vantagens do crescimento com desenvolvimento.

O Instituto Nordeste propõe-se ao desafio de tecer os fios que irão desaguar nessa proposta. Fácil não é. Pretensioso? Nem um pouco. Possível? Sim, com muito apoio e boa vontade dos líderes empresariais, da sociedade organizada, da academia, dos políticos que queira se juntar ao sonho de ver nossa casa rica e desenvolvida.

Este é o nosso desafio.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do EXTRA


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