colunista

Elias Fragoso

Economista, foi prof. da UFAL, Católica/BSB, Cesmac, Araguaia/GYN e Secret. de Finanças, Planej. Urbano/MCZ e Planej. do M. da. Agricultura/DF e, organizador do livro Rasgando a Cortina de Silêncios.

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Opinião: Marcha batida rumo ao cadafalso?

15/06/2025 - 08:22
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"Estamos cavando nossa própria cova. Chega de tratar a natureza como lixo." — António Guterres, secretário-geral da ONU.

No Nordeste, a terra ainda não treme. Mas já racha. A crise climática não anuncia sua chegada com estardalhaço — ela se infiltra. E onde infiltra, desestabiliza: o solo, o ciclo das chuvas, o agronegócio, o planejamento urbano, a política pública.

A marcha que atravessa a região é composta não apenas por agricultores e pescadores desalojados, mas por cidadãos comuns, gestores sem ferramentas e cidades que não sabem mais por onde expandir sem colapsar. Trata-se de uma marcha silenciosa, forçada pela degradação ambiental e pela lentidão estrutural das respostas.

A desertificação já compromete cerca de 20% do Sertão alagoano, afetando 38 municípios. Em toda a região semiárida do Nordeste, núcleos críticos como Seridó (RN/PB), Irauçuba (CE), Gilbués (PI) e Cabrobó (PE) revelam o colapso da resiliência ecológica. Solos antes produtivos tornam-se inertes; restam apenas 11% da vegetação nativa da caatinga em Alagoas, quando o mínimo legal seria 20%.

Nas cidades costeiras do Nordeste — de Ponta Negra (RN) às orlas de João Pessoa (PB), de Salvador (BA) a Maragogi (AL), passando por Caucaia (CE), Luís Correia (PI) e São Luís (MA) — o oceano avança. A erosão já atinge 65% da linha de costa nordestina, comprometendo calçadas, falésias, sistemas de drenagem e abastecimento. Obras emergenciais se tornam recorrentes, enquanto a elevação do nível do mar e a salinização ameaçam infraestrutura urbana e aquíferos subterrâneos.

Segundo o AdaptaBrasil, os municípios mais vulneráveis do Nordeste concentram-se no Meio-Norte e no Sertão — zonas onde a hostilidade climática se soma à exclusão histórica e à ausência de políticas adaptativas robustas. A falta de planejamento territorial e de governança climática dificulta tanto soluções endógenas como a atração qualificada de soluções externas.

A matriz elétrica nordestina, embora em expansão renovável com solar e eólica, ainda depende de reservatórios frágeis e chuvas cada vez mais irregulares. Essa pressão se agrava com obras como a Transposição do São Francisco e o Canal do Sertão Alagoano, que redistribuem (ineficientemente) água sem garantir a sustentabilidade da fonte. Esse dilema se repete em vários estados da região, que tratam o rio como canal — e não como ecossistema.

Na produção agropecuária, o impacto já não distingue porte. Entre 2020 e 2023, a produção de milho no semiárido caiu 37%, e as exportações de uva no Vale do São Francisco retraíram até 45% por eventos climáticos extremos. Fruticulturas irrigadas, antes consideradas "blindadas", enfrentam salinização do solo, aumento de pragas e perda de produtividade. Isso ocorre não só em Pernambuco e Bahia, mas também em trechos do Piauí, Ceará e Alagoas.

A saúde pública sente os efeitos: 5,4 milhões de crianças vivem em insegurança alimentar no Brasil — grande parte no semiárido. No Nordeste, além de dengue e chikungunya, cresce o registro de doenças respiratórias por calor extremo, surtos de diarreia pela contaminação da água e o avanço silencioso de transtornos mentais ligados à perda de lavouras e deslocamentos forçados.

Nas cidades, a tragédia se agrava. A urbanização sem planejamento em áreas frágeis do interior nordestino — em encostas, grotas e margens de rios — aumenta a vulnerabilidade a deslizamentos e enchentes. Um estudo do INPE apontou que as chuvas de 2022, que impactaram Alagoas, Pernambuco e Sergipe, foram 20% mais intensas por causa do aquecimento global, mas tiveram efeitos devastadores por conta da ocupação irregular e da ausência de contenção.

Estudos da ONU e da Fundação Getúlio Vargas indicam que o Brasil pode perder até 18% do seu PIB até 2050 se nenhuma ação estrutural for tomada. Mas antes que esse colapso seja macroeconômico, ele já é cotidiano — traduzido em perdas agrárias, apagão hídrico, insegurança alimentar, evasão escolar e quebra de vínculos territoriais.

O que esse número esconde é a distribuição desigual do impacto entre as regiões — e o Nordeste tende a ser a mais penalizada. Segundo estudos do CEDEPLAR/UFMG e da Revista Econômica do Nordeste, os efeitos econômicos da mudança climática no Nordeste serão proporcionalmente mais severos por três razões principais:

Alta dependência de setores vulneráveis — como agricultura, pecuária e pesca artesanal;
Baixa capacidade adaptativa institucional e econômica, com menor acesso a crédito, tecnologia e infraestrutura de mitigação;
Exposição geográfica crítica, com áreas semiáridas, zonas costeiras frágeis e núcleos urbanos com infraestrutura precária.

Esses estudos apontam que, em alguns estados nordestinos, a perda do PIB regional pode ultrapassar os 20%, especialmente em cenários de inação climática. Estados como Piauí, Maranhão e Alagoas, mais dependentes da agropecuária e com menor grau de industrialização, estão entre os mais vulneráveis. Projeções indicam que até meio milhão de pessoas poderão migrar do Nordeste até 2050 por inviabilidade econômica e climática — o que reforça o impacto regional desproporcional.

Mas crítica sem horizonte é só lamento. E essa marcha, embora desenhada pelo colapso, ainda pode ser guiada com coerência técnica, institucionalidade e direção estratégica.
As soluções existem — o desafio é dinamizá-las com inteligência e escala. O que falta não é inovação, mas gestão: dar capilaridade a boas práticas, sair do ciclo de projetos-piloto eternos, formar redes regionais de adaptação climática e territorializar as decisões públicas.

É preciso, também, blindar órgãos técnicos contra a captura política e o improviso eleitoral. A resiliência climática não se faz com trocas de comando a cada eleição, mas com continuidade, qualificação e vínculos com a sociedade civil.

E por fim, nenhuma política pública se sustenta sem metas claras, transparência e acompanhamento externo rigoroso. Toda adaptação séria exige indicadores, auditoria e disposição de cobrar-se a prestação de contas.

A inércia histórica empurra em direção à tragédia. Agora, sabemos o que está em jogo — e o que está ao nosso alcance fazer. Se for essa a rota, a marcha do enfrentamento passa a ter bússola, mapa e destino a guiá-la. Não será fácil, nem rápido. Mas a escolha entre desmoronar sob a inação ou caminhar com lucidez é irrevogável. A crise já não é aviso — é realidade. Enquanto isso, nossas respostas aos eventos climáticos tendem a demorar. A serem postergadas.

Barack Obama foi muito feliz quando afirmou em 2015: "Somos a primeira geração a sentir os efeitos das mudanças climáticas — e a última que tem a chance de fazer algo a respeito."

O que vai ser?

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do EXTRA


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