O livro dos mortos
O livro dos mortos de Alagoas ficava na recepção do Instituto Médico Legal Estácio de Lima (quando funcionava no Centro de Maceió), à disposição da imprensa e dos funcionários responsáveis por preenchê-lo. Nele estavam os nomes dos corpos que deram entrada no IML, idade, sexo, cor e local do óbito. Para a imprensa policial, era um prato cheio de histórias e detalhes do mundo cão, com atenção especial para crimes violentos.
Quem acompanhava a imprensa policial sabia das fragilidades daquela lista, muitas vezes preenchida a lápis para ser intencionalmente apagada - e retirada dos olhares do público quando algum jornal publicasse conteúdos que não agradassem à direção do IML. Lógico, era um explícito exercício de abuso de poder. Mas havia quem conseguisse driblar a mais iracunda das emoções humanas, também usando papel, caneta e criatividade. Ródio Nogueira, repórter policial da Gazeta de Alagoas, anotava, um a um, cada detalhe dos nomes no “livrão”.
Criou um acervo particular, seu próprio livro dos mortos. Quando a segurança pública anunciava, todas as semanas, o balanço do IML, Ródio Nogueira estava lá, contestando as contagens. Não era raro o secretário de Segurança Pública ligar para o jornalista, em busca do livrão elaborado por Ródio. Era a prova de que nem o xerife confiava em seus subordinados. A coleção foi crescendo. Ródio e a filha, Adelaide, também jornalista, anotavam e revisavam durante anos as estatísticas dos homicídios.
Tarefa complementada por recortes de jornais e desdobrada em outra contagem: os crimes de repercussão e a lentidão da Justiça, polícias e Ministério Público Estadual na apuração. Naquela época, Alagoas liderava os homicídios no Brasil. E aos finais de semana tudo piorava: 20, 30 corpos por mortes violentas entravam no instituto. Maceió era um dos lugares mais violentos do mundo.
Ródio Nogueira era testemunha e sujeito da história. Suas contagens não mentiam, e o trabalho ganhou respeito. Foi ele quem recebeu de Toré, funcionário do instituto, as fotos de Carlos Roberto Rocha Santos nas pedras do IML. O corpo deu entrada no instituto em 12 de abril de 2004, alvejado com 21 tiros, e depois sumiu. Por coincidência, o ex-deputado Cabo Luiz Pedro foi processado como autor intelectual do crime. Esse trabalho ajudou a esclarecer um dos casos mais rumorosos da história recente de crimes em Alagoas. Ródio morreu numa segunda-feira, 2 de maio de 2011, após duas semanas internado. Em 18 de junho de 2018, o governador Renan Filho entregou um novo IML. O antigo, com seu “livrão” preenchido a lápis, agora é digital. Mas duvido que Ródio confiasse na contagem atual dos mortos, sem antes consultar o seu “livrão”. banner
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do EXTRA