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Odilon Rios

Jornalista, editor do portal Repórter Nordeste e escritor. Autor de 4 livros, mais recente é Bode Pendurado no Sino & Outras Crônicas (2023)

Conteúdo Opinativo

Em Maceió, os imorais tinham cor: eram pretos

11/11/2023 - 06:00
Atualização: 10/11/2023 - 21:50
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No início do século 20, a população de Maceió dobrou de tamanho, o que também significou piora nas já degradadas condições de vida. A pressão do capitalismo no cenário internacional e dos abolicionistas fizeram o Império decretar o fim da escravidão. Libertos de uma secular estrutura que espremeu corpos e almas, os pretos nem foram indenizados pelo Estado e seguiram jogados para a Dona Miséria. Áreas rurais foram diminuindo, a geografia urbana ganhou novos formatos, importância, status. Luxo e pobreza, ostentação e despossuídos movimentavam o mesmo espaço.

No Jacutinga (hoje o bairro do Farol, em Maceió), habitações modestas revelavam a nova paisagem da urbanidade. A Maceió esquecida naqueles primeiros anos da República do marechal alagoano Deodoro, depois Floriano e a série dos presidentes café com leite. Carvoeiros, lenhadores, vendedores de ripas, caibros, paus para cercas, segundo descreve Cynthia Nunes da Rocha em “Para além do guia dos navegantes: o farol de Maceió (1827-1951)”.
“Os jornais locais costumavam remeter-se ao Jacutinga, no período pós-abolição, como uma região que aglutinava pessoas imorais, cujas práticas eram motivos legítimos de serem reprimidos. Claramente os diversos tons pejorativos a respeito dessa população condizem diretamente às suas precárias condições de vida”, descreve a pesquisadora Sandra Catarina de Sena em sua dissertação de mestrado “São quase todos pretos”: Cotidiano e Experiência da Classe Trabalhadora em Maceió Pós-Abolição, apresentada pela Ufal.

A imoralidade tinha cara e classe social: era preta e pobre, como hoje. Mas a crônica policial da época estampava a imprensa escrita, onde desfilavam os tipos criminosos que, juravam aquelas páginas, só existiam mesmo entre os pobres e pretos: putas sob julgamento, mendigos que viviam sob risco de prisão (era proibido, na Maceió de 1848, trabalhadores escravizados pedirem esmolas pela cidade), feiticeiras. Um enxame de gente povoava a Levada, Ponta Grossa, Bebedouro, Trapiche da Barra, margeando a lagoa Mundaú. E mais e mais chegavam, abandonando o sertão, em busca da manjada oportunidade da cidade grande. Gente vivendo um dia após o outro, uns morando pelas ruas, outros conseguindo bicos. E iam e vinham canoeiros, remeiros, lavadeiras aproveitando o porto da Levada, escoando mercadorias para o comércio da capital alagoana. Quem não era branco nem tinha propriedades estava associado à violência e crimes.

E isso na Alagoas dos marechais ocupando os mais altos postos do Executivo. E logo na República, que deixou escrito na Constituição o princípio da igualdade entre todos. Alguns - ao que parece - teimavam em ser mais iguais que os outros. O preto Jacob beirava este Brasil republicano. Era um autêntico brasileiro deste período. O ano era 1905, quando o carroceiro e empregado da limpeza de armazéns da firma de tecidos Almeida Guimarães foi acusado de roubar garrafas de bebida, tecidos de algodão, peças de roupa. O doutor Adolfo Almeida, sócio do comendador Teixeira Basto, vestiu-se de delegado, promotor, juiz e Deus. A polícia ouviu o doutor atentamente. Disse que o preto Jacob era um ladrão perigoso, levando também seu relógio de ouro. E a polícia alagoana? O que fez? Uma investigação a jato, sob medida. Descobriu assim, de repente, que Jacob também era investigado em outros crimes. Confiante na palavra do doutor Adolfo, a polícia aconselhou aquele representante da fina flor da elite alagoana a demitir o preto Jacob porque ele integrava uma quadrilha com outros três empregados da mesma empresa. E evitasse contratar este “tipo” de trabalhador. Pois a República despejava as velharias do Brasil aristocrático nas costas daquele trabalhador. Nada novo - aliás, um museu de novidades.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do EXTRA


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