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Odilon Rios

Jornalista, editor do portal Repórter Nordeste e escritor. Autor de 4 livros, mais recente é Bode Pendurado no Sino & Outras Crônicas (2023)

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Há 100 anos, Isabel era a heroína dos negros escravizados

18/11/2023 - 06:00
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Divulgação
Zumbi e Dandara
Zumbi e Dandara

Em 1929, a Revista de Ensino, publicação alagoana mantida por artigos de professores locais e base curricular das escolas, exaltava a princesa Isabel, “filha do nosso inesquecível Imperador D. Pedro II”, como a grande heroína no fim do longo processo de escravidão no Brasil.

Nesta época, Zumbi dos Palmares ainda era tratado como uma figura pouco expressiva, apesar do reconhecimento do peso, força e tamanho do quilombo erguido na Serra da Barriga, em União dos Palmares. Também o 20 de novembro ainda não era considerado o dia da Consciência Negra. As comemorações giravam em 13 de maio, dia da abolição, assinada pela filha do imperador, e era considerado feriado, abolido no governo Getúlio Vargas. Mas, em 1929, 41º ano da abolição, dois anos após a morte da princesa, a memória do ato imperial seguia firme no imaginário alagoano. Só que o massacre promovido pela escravidão era inegável.

A professora Laura Wanderley Lima, do grupo escolar Fernandes Lima, falava do “vil comércio de escravos com a África”, através de “negreiros, sem ar e sem conforto; vinham os desgraçados cativos, com a alma retalhada de saudade, retalhado o corpo de açoites”. Uma viagem longa, “durante a qual muitos morriam”, além de expostos em mercados “examinados e comprados como animais de carga”. Submetidos, em seguida, a outro regime “e aí começava para os desgraçados a sua dolorosa vida de martírios, quer nas cidades, quer nos engenhos e fazendas, sob o chicote, a corrente ao pescoço, o tronco aos pés, ao sol e à chuva trabalhando para enriquecerem o senhor que os maltratava”.

Apesar de a professora quase que individualizar nos “senhores” os maus tratos, era impossível esconder o passado escravagista. E os negros de Palmares, que fugiam das fazendas para a Serra da Barriga, “aí organizaram uma república que se chamou, por ser a serra fértil em palmeiras, o quilombo dos Palmares”.

Lugar onde conquistaram a “liberdade sonhada”, “até que foram derrotados por Domingos Jorge Velho e, não querendo mais voltar à vida antiga, preferiram a morte”. E pergunta a professora aos alunos: “Não acham vocês que era uma desumanidade serem tratados assim, sendo que eram nossos semelhantes?” Por certo, uma história assim teria de ter um final feliz. E esse final caberia a uma princesa, filha de um rei, assinando a lei Áurea.

Eis a visão de uma época nem tão remota assim. 100 anos depois, novas pesquisas e maior aprofundamento em nossa história mostram que o ato da princesa não foi determinado pela emoção e sim pela pressão, tanto internacional quanto dos abolicionistas. E Isabel perdeu força no debate histórico para, em seu lugar, assumir Zumbi dos Palmares, figura ainda coberta de cascas heróicas e místicas, mas, aos poucos, como naquele distante 1929, sendo desnudado. A luta, porém, na Serra da Barriga, permanece viva e atual.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do EXTRA


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