colunista

Odilon Rios

Odilon Rios é jornalista, editor do portal Repórter Nordeste e escritor. Autor de 4 livros, mais recente é Bode Pendurado no Sino & Outras Crônicas (2023)

Conteúdo Opinativo

Memorial da casa de teto baixo

02/03/2024 - 06:00
Atualização: 02/03/2024 - 12:21

ACESSIBILIDADE


Na casa de teto baixo, atravessada de varetas segurando telhas, pendurava-se o facão e a bainha em buracos secretos, que as crianças conheciam, entre aquelas madeiras alcançáveis. Eles garantiam caçar bichos nas matas próximas, mas a bainha estava lá, nas raras surras bem dadas quando as travessuras excediam as paciências já mortas, tão velhas quanto os próprios velhos. 

O caçador pendurava a bisaca, com algumas balas, no último dos quartos, perto do quintal. A espingarda estava lá, intocável. Entre as telhas, alicate, chave de fenda e estrela, outro objeto qualquer para arrochar ou afrouxar coisas do mundo. Na imaginação das crianças, o alicate escondia um bicho bocudo, dentes largos, espalhando medos criativos e gostosos de imaginar, brincadeiras interessantes. 

Graça pouca nas chaves. Telhas das casas baixas guardavam também as tabicas, extensões das palmas das mãos. As surras de tabica só se tornariam impossíveis quando as crianças quebravam um a um os gravetos de madeira, restos de galhos e árvores secas, duros para doer nas malcriações. Depois, elas punham os pedacinhos inúteis nas telhas. Não cumpririam mais a função social de dispersar raivas e ódios pelas fugas escondidas dos meninos para o rio bravo, túmulo de tantas crianças apenas felizes e curiosas. 

Sereias não são apenas lendas: buracos e bacias arrastavam quem não aguentasse nadar, e as águas sempre eram encantadas, chamavam mais gente. E tinha a morte certa para tantos que se foram antes do tempo. Descobertas as varetas partidas em pedaços, lá seguia a avó obrigando os netos a buscarem novos gravetos, pondo de novo nas telhas da casa baixa, até que eles repetissem o ritual, quebrando em pedacinhos, encaixando nas telhas. Eternas repetições.

Casa baixa era um forno. O chão frio e vermelho, encerado e limpo, virava uma cama para a sesta. Deitava-se com a porta da rua escancarada, vento quente, poeirento, céu sem nuvens, azul, embalo do sono. Mais tarde, desperto, um cheiro de café, passado sem coar, uns pães torrados ou bolachas de padaria ou feira, a cadeira de balanço, a TV ligada, o sofá, o ir e vir de gente, conversas em dia, maldizeres, fofocas, novidades, incentivos e as crianças brincando na rua, trazendo gatos e cachorros, cassacos ou passarinhos, todos para criar, preparando-se para a reação dos velhos, algumas vezes amistosos pelos novos bichanos. 

Nas cheias, os telhados logo se cobriam pelas águas. Quando dava, pendurava-se o que podia. Os móveis que aguentaram outras cheias eram só esvaziados. Os outros já se sabia: quando o rio recuasse e o sol furasse as nuvens, eles inchavam. Imprestáveis, eram arrastados para a rua, aguardando o caminhão do lixo. Muitas vezes a caixa baixa sobrevivia às ondas das cheias. Em União dos Palmares, conheci a casa da dona Maria, na rua da Ponte, em frente ao rio Mundaú. Já tinha sido casa baixa e, após reformas, ganhou mais altura, espaços mais definidos, sala maior. O velório do seu José, filho dela, foi na sala. 

Enquanto perduravam as exéquias, as crianças brincavam. As enchentes de 2010 varreram a rua da Ponte. Mas sobraram as grossas e bem feitas paredes da casa da dona Maria. Obras de pedreiros do povo. Logo, logo voltaria a ser povoada, tanto a rua quanto a casa. O Tonho, outro filho da dona Maria, morou nela até morrer. Patrimônios assim são aproveitados pela eternidade, enquanto durem. A destruição provocada pelas cheias obrigava muitos donos destas casas a reconstruírem os escombros. 

Casas baixas ganhavam primeiro andar ou voltavam a ser o que eram, só que mais altas. Crianças cresciam e juntavam memórias. Ou seriam as futuras herdeiras, velando os antigos morrendo aos poucos até elas mesmas cumprirem seus destinos, ou elas pegavam o beco, para nunca mais voltarem. As casas baixas também são antigas e quando não resistem mais ao tempo, estão nas lembranças. Lá elas ficam para sempre.banner

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do EXTRA


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