colunista

Odilon Rios

Odilon Rios é jornalista, editor do portal Repórter Nordeste e escritor. Autor de 4 livros, mais recente é Bode Pendurado no Sino & Outras Crônicas (2023)

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Fome cercada pelo deserto verde

27/04/2024 - 06:00

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No Brasil escravocrata e monocultor, a fome e as deficiências do cardápio do nosso povo eram assuntos pendurados no dia a dia, lembrados pelo estômago e registrados nos relatórios oficiais. Plantar cana-de-açúcar era mais rentável que garantir, através da terra, uma produção de alimentos que pudesse ao menos prover o mínimo necessário ainda que dentro da lógica “na hora da fome toda comida serve”.

No início do século 19, Pernambuco registrou seca que durou 5 anos. E estamos falando de uma área relativamente distante dos canaviais erguidos nos férteis vales úmidos do Coruripe e Camaragibe. Nestes lugares, ao contrário, a terra permitia outras plantações, mas a monocultura sempre prevalecia. Em abril de 1640, Maurício de Nassau obriga todos os senhores de engenho e lavradores de cana a plantar, nos meses de agosto e setembro, 250 covas de mandioca por cada negro de trabalho. E outros moradores de qualquer nação tinham de plantar 500 covas. Lei quase sempre desrespeitada, em nome dos lucros.

A estrangeira cana-de-açúcar era soberana demais para permitir dividir sua majestade com uma planta ligada aos indígenas, sinônimos de pobreza. E isso foi gerando, além das visíveis mortes por fome, o invisibilizado flagelo dos organismos desnutridos e já roídos pela sífilis e a boba, o alcoolismo e o paludismo, mais a ação dos vermes, constituindo gerações de doentes como identifica Gilberto Freyre em Casa Grande e Senzala.

Onde houve agricultura houve latifúndio. E onde havia latifúndio, havia monocultura. O regime escravocrata e o latifundiário sufocaram a policultura alimentar.

Na revista Brasil Açucareiro: Revista Quinzenal dirigida pela Comissão de Defesa da Produção de Açúcar (RJ), há o artigo Geografia Econômica e Social da cana-de-açúcar no Brasil, de Gileno Dé Carli (1908-1997), pernambucano, fazendeiro, jornalista, engenheiro e deputado federal. Em 1936, segundo identifica, o decréscimo das chuvas e sua má distribuição obrigaram Pernambuco a importar farinha de mandioca, cereais e leguminosas. Certamente não era exceção, mas chama a atenção que as terras de Pernambuco e Alagoas eram o empório mundial do açúcar, hoje Alagoas é líder nacional em porcentagem de famintos e as grandes feiras nos municípios mais a Central de Abastecimento (Ceasa) importam alimentos que temos condições de produzir, mas a cana-de-açúcar e agora o eucalipto dominam a paisagem.

Nem faz tanto tempo assim que na Via Expressa, em Maceió, na entrada do Conjunto Cambuci, havia uma larga extensão de cana-de-açúcar, depois o terreno foi fatiado para a construção de supermercado e prédios residenciais. Os canaviais que sobraram da antiga Usina Cachoeira do Meirim, na entrada do bairro do Benedito Bentes, vão se transformando em conjuntos habitacionais, nova avenida em direção ao aeroporto internacional Zumbi dos Palmares e um futuro shopping. Nada de terras agricultáveis. Mais uma vez, a lei dos negócios.

Poderia ser bem pior, porque os donos de engenho buscavam avançar o deserto verde sobre as matas ainda virgens, aproveitando a madeira para as fornalhas. Florestas mais à frente transformadas em matas do tombo real, segundo Dirceu Lindoso em A Utopia Armada: Rebeliões de Pobres nas Matas do Tombo Real. Matas que eram oásis aos pobres, pressionadas pelos canaviais.

Em 1789 o governo foi obrigado a proibir o corte de madeiras para a construção de fragatas de vinte peças e naus de última grandeza. Em 1796 criou-se o cargo de juiz conservador das matas. Um ano depois, o império ordena que todas as matas existentes em Pernambuco (consequentemente Alagoas) pertenciam à Coroa. Matas do Tombo Real, que mais à frente seriam fortalezas para Vicente Ferreira de Paula, o general de todas as matas como lembrou Sávio de Almeida. Ordens boas no papel, más na hora de aplicar.

E o Nordeste, principalmente Pernambuco e Alagoas, continuaram com a falta de gêneros alimentícios. Falta ainda pior quando qualquer anormalidade no clima diminui ou anula a produção da farinha de mandioca e cereais na zona de transição da Mata para o Sertão. E assim continua.banner

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do EXTRA


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