Major, abolicionista, apoiado pelas oligarquias
A história brasileira é atravessada por personagens interessantes e aparentemente contraditórios, com ideias consideradas avançadas, por um lado; do outro, convivendo em contextos arcaicos. Mais curioso ainda: atraindo outras pessoas, também misturando elementos de progresso, encaixados na mentalidade rígida das tradições.
14 de junho de 1885. Estamos no Centro de Maceió. Bonifácio tinha 15 anos, varria a calçada da loja do irmão quando viu, na rua, um negro com uma coleira de ferro no pescoço, ligada a um chocalho dos que se punham nos animais. A cena chocou o jovem. Indignado, pegou o negro pelo braço e saiu gritando pelas ruas do Comércio, chamando a atenção de outros comerciantes, boa parte coronéis, porém abolicionistas.
Ricardo Brennand ouviu e pediu ajuda a Domingos Lordsleen, Francisco Domingues, Antonio Alves, Pedro Soares, Lima Rocha, Lima Buarque e outros tantos. Com Bonifácio, todos seguiram para a tenda do ferreiro Pedro Delfert, no beco São José. O negro ajoelhou-se, as correntes repousaram próximas à bigorna e foram arrebentadas com uma talhadeira de aço. Estava livre. O dono do escravizado era o capitão Jacinto Alves da Silva, dono do Engenho Hortelã, de Marechal Deodoro. Ou o coronel Flávio, dono do Engenho Satuba. Dois homens de patente, como aqueles outros coronéis, todavia escravagistas.
O abolicionista Bonifácio Magalhães da Silveira, tio da famosa psiquiatra brasileira Nise da Silveira, virou mais tarde o major Bonifácio, agente cultural no extinto bairro do Bebedouro. Leitor de Voltaire, admirador da Revolução Francesa, membro da Sociedade Libertadora Alagoana, republicano assumido. Bonifácio possuía o título de major da Guarda Nacional e do Tiro Alagoano, além de tenente honorário do Exército.
Na Sociedade Libertadora Alagoana ajudava a juntar dinheiro para comprar a alforria de escravizados. Quando no dia 13 de maio de 1888 chegou a notícia do decreto assinado pela princesa Isabel, pondo fim à escravidão. Foram quatro dias de festa.
Os antônimos reunidos num homem, porém ajustados ao patriarcado local e suas características bem brasileiras. Com o fim da Monarquia e na era Republicana, foi escolhido intendente de Maceió (o prefeito da época), com apoio das oligarquias, as mesmas que décadas antes juravam fidelidade eterna ao imperador Dom Pedro 2ª e viraram a casaca quando o alagoano Deodoro da Fonseca deu um golpe e chegou ao poder.
O major Bonifácio foi ainda vice-intendente, vereador em Maceió e deputado estadual por várias legislativas e, no final da vida, até a aposentadoria, responsável pela Alfândega, no Porto de Maceió. Nada disso foi alcançado sem as boas relações políticas do major, que começou na política no governo Gabino Besouro, depois enfronhado na oligarquia Malta, misturado à oposição de Clodoaldo da Fonseca às mesmas oligarquias antes aliadas do major e, na revolução de 30, Bonifácio ainda ajudou a ocultar armas e munição vindas do Recife para o Porto da capital alagoana, além de participou de um plano para apoiar a fuga para Alagoas (também via Porto) do governador pernambucano Estácio Coimbra, impactado pela revolução em que o militar Getúlio Vargas derrubou as oligarquias do café e chegou ao poder. Um militar como o major.
Ao longo do tempo, foi construindo uma coleção de documentos dos séculos 17, 18 e 19. Pouco antes de morrer, doou tudo ao Instituto Histórico e Geográfico alagoano. Virou a Coleção Bonifácio da Silveira, com dois mil documentos, distribuídos em 6 volumes, contando eventos da sociedade escravista alagoana. Alguns destes documentos conseguidos pelo major foram salvos do fogo, talvez medida da época orientada por Rui Barbosa para apagar rastros que pudessem gerar ações de indenização de negros contra o Estado.
Saudemos o major Bonifácio.
Fonte: Abolicionista, Caixeiro, Festeiro, Político e Sócio do IHGAL: A contribuição do Major Bonifácio da Silveira para o estudo da História de Alagoas.
Autores: Gian Carlo de Melo Silva e Sofia Holanda Sodré de Brito Silva. Publicado em Mneme. Revista de Humanidades. v. 25 n. 49 (Jun/Dez. 2024)
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do EXTRA