colunista

Odilon Rios

Odilon Rios é jornalista, editor do portal Repórter Nordeste e escritor. Autor de 4 livros, mais recente é Bode Pendurado no Sino & Outras Crônicas (2023)

Conteúdo Opinativo

A Ilha (dos Vivos)

11/05/2024 - 06:00

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Ilhas fascinam, espantam, assustam. Elas estão em todos os lugares. Rachmaninoff fez uma interpretação musical em cima do quadro A Ilha dos Mortos, de Böcklin. Talvez são duas ilhas, cada artista com sua forma de olhar. Floriano Peixoto gostou quando o governador de Santa Catarina Hercílio Luz deu o seu nome para Florianópolis. O povo chiou. Ao estilo, Floriano, segundo presidente da República e alagoano, mandou matar e degolar 300 pessoas. Um batismo de sangue que marca até hoje Santa Catarina.

Carlos Moliterno também inventou sua A Ilha (Imprensa Oficial Graciliano Ramos, 4ª edição, 2019), onde a morte e o sangue dão lugar a praias rosas, rios, pétalas, olhos em silêncio e mistérios dos sonhos. A Ilha, em verdade, é o próprio ser, Moliterno, espalhado no tempo. “Entre a Ilha e o céu recomponho os meus dias; / dela retiro o sol, retiro os ventos; / dela retiro a cor da minha geografia”.

Poeta, jornalista, crítico literário, presidente por seis mandatos seguidos da Academia Alagoana de Letras num tempo em que se exigia a publicação de livros como critério para entrar ou presidir esta instituição. Os anos passam. São fugazes como a renovação das energias desta ilha inventada e vivida. Ilha onde as angústias ficam de fora. “Com imagens da infância no meu rosto, / recomeço a viver meu calendário”.

Infância tem caminhos. A de Moliterno tinha também brinquedos, choro, espantos. Tinha a figura grave do pai, reduzido a uma figura apagando-se no retrato. “Desses dias vieram fontes mansas / e esta ilha que trago no meu peito / e os seus vales que trago nos meus olhos”.

Quando a pessoa que rema vai levando alguém vestindo de branco (uma santa?) na direção da Ilha dos Mortos, Rachmaninoff vai descascando o mistério daquele lugar. Mortos não há nem aparecem. O não-mostrar é o terror e o deslumbramento. Também um veleiro perde os rumos no oceano, na ilha inventada por Moliterno. Os pássaros sonâmbulos desabam num lugar que a todos possui e não é de ninguém. “O vento joga folhas sobre as águas, / joga velhas canções, poemas, odes, / e as aflições do velho marinheiro”.

Uma ilha assim, crescendo dentro dos olhos secos, dói. Doem os olhos do marinheiro, velho sem navio “e os olhos secos são um mar sem água, / um mar coagulado nas retinas”. A Ilha de Moliterno tem estas estações definidas. Mas ela tem ao seu redor aquele mar que se rema e se rema, derramando-se “em minhas veias, / como um fio presente, silencioso, de rochedos, de bosques, de jardins”. Tudo é febre, tudo é sonho. Somente assim, “Meu barco vence o tempo e vence o medo, / mas rebenta seus mastros e seus velames / e chego às suas praias naufragado”.

Nos pés desta Ilha, há o testemunho da morte e do nascimento. Ou renascimento. Somos náufragos que recusam tanto a morte quanto a extinção. Somos tempo. E vida.banner

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do EXTRA


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