Como diria o motorista: a que ponto chegamos

Após quase um mês e meio de confinamento e isolamento socioeconômico, não é novidade pra ninguém que a pandemia do Coronavírus tem afetado toda rotina e setores da sociedade humana para pior. O homem moderno, acostumado a uma mobilidade jamais alcançada durante toda a existência da humanidade, de repente tornou-se prisioneiro de uma gaiola invisível cuja punição para aqueles que rompem suas hastes é uma internação hospitalar demorada e até mesmo uma morte precoce.
A situação é tal que apenas o eixo da terra e o ciclo astronômico do sol não foram afetados. É também certo que a natureza, aí incluídos fauna, flora e ambiente, também foram afetados. Estes para melhor.
Mas descendo das considerações sociológicas, astronômicas e ambientais para um nível mais comezinho das relações humanas, gostaria de compartilhar, não em detalhes, a conversa à distância que tive com um amigo que fazia parte de um pequeno grupo de WhatsApp, montado para discutir as consequências do isolamento pandêmico no dia a dia de cada um.
Casamento que já passava do meio dia pra tarde, o amigo vinha levando a sua relação às custas de “Hoje não dá pois tive muito trabalho e aborrecimentos”, por parte dele, - “Hoje não amor... tô com uma dooor de cabeeeeça...”, por parte dela.
Entre escusas furadas e um “pula cerca” aqui e ali, não sei se unilateral, me dizia ele, ia remendando o casamento como alguém que faz um retelhamento de goteiras em um velho telhado.
Até que, com o lockdown social rigoroso, chegou a hora da verdade. Dia inteiro cara a cara, rotina acentuada, afazeres de casa divididos, queixas e defeitos aparecendo mais ainda, o lockdown da alcova tornou-se crítico.
Sem imaginação pra apimentar a relação e revivificar o moribundo, além das farmácias fechadas, e do doutor amigo sumido cuidando dos casos do Corona, o amigo então mostrou a que não veio.
Chocado com a flacidez “pós-morte” em que se encontrava o quarentenado após a suspensão do uso de doppings, imaginou então que os ares bucólicos de sua pequena e bem cuidada propriedade rural talvez lhe revigorassem o ânimo. Mas ledo engano. O cricar dos grilos e o coaxar dos sapos não lhe permitiam a necessária concentração que a situação exigia.
Retorna à urbe. E após brandir toda sorte de desculpas para a carente confinada, viu-se sem desculpas. Esta, por sua vez descobriu que quanto mais exigia do pobre coitado, menos o confinado respondia e mais amolecia.
Lembrou-se então de um workshop que fizera, voltado para terapia de casais, no qual um dos tópicos que faziam mais sucesso era o dos estímulos por fantasias.
Sacou então da velha caixa que vivia escondida da vista dos filhos e passou a cada noite vestir aquela que lhe parecia mais excitante. Primeira e segunda noites. Ela o vestiu de Batman e Homem Aranha. Resultado negativo. Disse ele que não conseguia pois lembrava-se do Mercado de Wuhan, onde vendia-se todo tipo de insetos e onde dizem foi um morcego que disseminou a pandemia.
Segunda noite. Vestiu ele de Zorro, não deu certo, pois notaram que a máscara estava sendo usada no lugar errado.
Terceira noite. Ela vestiu-se de enfermeira safadinha. Pior, ele quase corre do quarto, pois já se via sem ar, atendido numa UPA.
Quarta noite. Ela de aeromoça, mas não funcionou. Pois há muito que não entravam num avião, ele havia até esquecido a imagem sensual de uma aeromoça, além do que, lembrava-se que esse foi o principal disseminador do vírus.
Quinta noite. Ela de coelhinha. A broxância continua, pois nessa atípica Páscoa ninguém comeu qualquer coelhinha.
Sexta noite. Ela foi mais longe e mais atrevida. Vestiu-se de Tiazinha. Mas nada. Ele aterrorizado lembrou que a Tiazinha, de tão velha, encontrava-se no grupo de risco.
Sétima noite. Ela apelou para o inverso. Vestiu-se de freirinha. Ele, na penumbra do quarto, quando viu aquele hábito vetusto e escuro, quase tem um infarto, pois viu ali a mulher da foice caminhando quarto adentro para lhe carregar.
Oitava noite. Ela volta para o mais sensual e atrevido. Veste-se de Feiticeira. Ele não se assusta, mas também não dá sinal de vida, pois diz puto que se a feiticeira fosse boa já teria inventado uma poção mágica pra matar esse maldito vírus. Além do mais, veio-lhe à mente a imagem do Luciano Huck que continua presente e atuante e esqueceu-se dos dotes sensuais da Feiticeira.
Nona noite. Ela veste-se de Coelha Annita, fantasia recentemente encomendada a um site erótico. Ele, ao vê-la, não reage. Sem saber o que tinha acontecido ela lhe pergunta. “O que foi agora?” Ele acabrunhado responde. “Não viu o ministro falando na coletiva de imprensa sobre um milagroso remédio para o Corona? Dizem que é o Annita! Deus me livre”.
Décima Noite. Ela quase desesperada apela e veste-se de bombeira fogosa. Ele, ao ver aquelas cores laranjas avermelhadas, imagina se os vizinhos haviam desconfiado que ele estava contaminado com o vírus e chamaram o Samu.
A partir dali já se viu em completo isolamento, tubo enfiado na traqueia e enterro com caixão lacrado, acompanhado apenas de vetustos funcionários do necrotério vestidos em herméticos macacões brancos. Desesperado quase tem um AVC, pula a janela em desabalada fuga, salta os muros e some na noite, acompanhado apenas pelos olhos dos incomodados felinos que, nos telhados, sem Corona, sem quarentena e sem fantasias, faziam seu tradicional e barulhento amor. Miiiiaaaauuuuuuuuuuu!!!!.... Sssshiiiiiiiii!!!!
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do EXTRA