“A cirurgia é eterna”. Prof. Dr. François
ENTREVISTADORES: JOÃO BATISTA NETO,(médico e prof. da Ufal), JOSÉ CARDOSO CAVALCANTE JR. (cirurgião oncológico/Cacon/Ufal E ÉDER RIOS(cirurgião do Hosp. Dos Serv. Do Rio de Janeiro)
O renomado cirurgião e professor Dr. François, é o epônimo do Dr. Francisco Silva Oliveira, dos mais ilustres e competentes nesta terra, que dedicou-se com afinco a operar todos os pobres que chegassem à Santa Casa de Maceió(1851) ou ao Hospital Universitário Alberto Antunes(HUPAA) da Faculdade de Medicina de Alagoas/Ufal, onde se formou e foi fundador da Cátedra de Angiologia e Cirurgia Vascular. Também foi cirurgião da elite alagoana, pois foi primeiro assistente do cirurgião Prof. Dr. Abílio Antunes, que teve a maior clientela privada do Estado de Alagoas.
Aproximei-me do professor aos poucos, quando também ingressei na cirurgia digestiva da Ufal há 41 anos(1984), alertado por Dirceu Falcão e João Pereira, secundados em duas coisas: meu nome é trabalho(workaholic) e cultura médica assombrosa. Apenas nessa entrevista descobri que diariamente ele só dorme depois de ter lido um texto médico. O conhecimento da medicina se derrama em avalanche, mas é sob um manto suave e sem arrogância.
Todos os médicos que aportam à capital vindos do interior costumam ser humildes, porque lá a força suprema e que lhe segue indiferente é a natureza.

Recém completados 88 anos, dr. François casado com Vanda Fonseca é pai de 3 filhos(1 fisioterapeuta, um médico neurocirurgião e um pecuarista). É avô de 06 netos e a companheira atual, dra. Ângela Torres é também cirurgiã vascular e angiologista.Fechou o consultório na pandemia e continua como assessor médico da provedoria da Santa Casa.
Esta série de entrevistas magnas com grandes personalidades médicas ou de grandes mestres foi iniciada para que todos eles não fiquem no limbo todos, mas como uma coisa viva e não como se fôssemos procurar nas ondas do mar de hoje as marcas das de ontem e nada se encontrará. Uma memória ficará, pois se “a medicina quiser ser mais que um oficio, haverá de cultivar sua história e seus ícones.”
Introdução:
Desde o tempo de menino, Dr. François, foi atraído pela presença do Dr. Lelela, médico de família, seu parente e padrinho, que generalista, ainda fazia alguns procedimentos cirúrgicos de pequena monta e teve sua vocação para a cirurgia despertada desde então. Nascido em Souza Paraíba, nos confins do noroeste paraibano, a caminhada foi longa e veio de muito longe. Certificou-se pelo rádio que a Escola Bahiana de Medicina, era a melhor do país na década de 50 do século passado. Em Souza, o aluno só ia até parte do ginásio e um primo lhe acolheu em Petrolina(PE) para conclui-lo. O segundo grau foi em Salvador, no famoso colégio jesuíta em regime de internato, Pe. Antônio Vieira. Duas disciplinas foram mais desafiantes: matemática e química.
Além da UFBA ele ia concorrer ao vestibular de medicina em Recife, mas soube que a Faculdade de Medicina de Alagoas, ia fazer uma segunda edição do vestibular para preencher as vagas em 1962. Esbarrou por aqui num sábado à tarde e a faculdade tinha acabado de ser incorporada à Universidade Federal de Alagoas, recentemente criada(1961). Daqui, nunca mais saiu, a não ser para estudos, adotou a terra, e nela fez família e filhos, referidos acima.
Com tamanha disposição para o trabalho foi fácil ser incorporado na equipe da Casa de Saúde São Sebastião, da família Nobre e Antunes. Concluído o curso em 1968, o prof. já tinha estágio garantido com o prof. Jessé Teixeira na cirurgia torácica, maior expoente nacional à época. Então, dr. Alberto Antunes, o convida para fazer o estágio em Lisboa, por período de dois anos. Sabendo que o pai não ia permitir, ele vendeu seu carrinho, transformou em dólar e foi parar no Hospital Santa Maria da Universidade de Lisboa, Portugal, de onde fez o comunicado familiar. Lá estava um dos pioneiros da cirurgia vascular, Prof. Cid dos Santos, que junto com Martorell, foram os que lideraram a separação da cirurgia vascular da cirurgia geral, passando a mesma área a ter cunho de especialidade. Acabado o período de formação, ele retorna a Maceió, já que preferiu a ser cirurgião português na África colonial portuguesa.
Em 1970, Maceió só tinha 400 mil habitantes e a tecnologia demorava a chegar. Assumiu a cirurgia vascular e cirurgia geral como especialidades. A cidade era pequena e ninguém conseguia sobreviver de uma área específica. Reintegrou-se à equipe do Prof. Abílio Antunes, seu eterno mentor. A readaptação de quem vinha da Europa foi difícil e pensou ainda em retornar a Portugal, porém dr. Abílio: “se acalma François, depois tudo se arruma”. E assim aconteceu.
Fazendo um resumo do seu percurso profissional, podemos enumerar:
- prof. da Faculdade de Medicina de Alagoas, homenageado no Jubileu dos seus 75 anos, escrevendo um capítulo no livro do Jubileu, agora incorporado à Library of Congress(Washington), biblioteca do congresso americano e das mais importantes do mundo;
- Fundou a Cátedra de Cirurgia Vascular e Angiologia;
- Pontificou na Cirurgia Geral e Vascular no Serviço de Cirurgia da Santa Casa de Maceió, tendo liderado a equipe do primeiro transplante renal em Alagoas e implantado o primeiro marca-passo cardíaco no Estado;
- Professor da Faculdade de Medicina de Alagoas durante 30 anos, liderou com drs. Erisvaldo Cavalcante e Úlpio Miranda a instalação do Hospital Universitário Prof. Alberto Antunes, onde assumiu cargos de direção e conseguiram trazer o Projeto Hope do Governo americano para países em desenvolvimento(1973), cujo impacto na Escola reverbera até hoje, seja pelo equipamento criado próprio de campo de ensino para a medicina, se libertando o curso do campo de estágios na Santa Casa, cujos parcos recursos já davam sinal de esgotamento, por ter sido por 22 anos o campo de estágio para o primeiro curso médico no Estado.
- desenvolveu estudos na área da hipertensão portal esquistossomótica, cujo trabalho principal faz parte da Library Cochrane(Londres) em estudo randomizado realizado por este articulista e o professor na cirurgia, sob coordenação da profa. Celina Lacet, e foi publicado no Annals of hepatology(2016).
O Prof. François nunca faltou ao apoio aos cirurgiões jovens que solicitaram e de forma serena e humilde. Certo sábado, às 7:30h de um sábado, disparo um telefonema antes do what zap. Professor tive uma complicação grave!, exclamei. De imediato, a voz do outro lado da linha tranquilizou-me: - tive uma complicação pior! e dispôs-se para ajudar.
Entrevista
EQUIPE- Prof. o sr. é natural de Souza na Paraíba, dos extremos lá em cima. Como esbarrou em Maceió?
Prof. François- O vestibular quem me trouxe até aqui. Lembro que cheguei na véspera, num final de tarde de um sábado. Eu estava fazendo vestibular em Salvador e ia fazer em Recife, quando um amigo me avisou: - Maceió vai abrir nova edição do vestibular para preencher vagas. Esse amigo me inscreveu por procuração e vim fazer a prova, logrando êxito. Concluí o curso aqui e já tínhamos um grande benefício para a classe média: a Escola já não era privada. Tinha sido incorporada à Universidade Federal de Alagoas e o curso seria gratuito.
Equipe- Como se integrou à equipe do Prof. dr. Abílio Antunes?
François- A casa de saúde São Sebastião foi montada pelos Nobre/Antunes e me aproximei a partir do 3º. Ano. Assim, vendo meu interesse, Dr. Abílio, me convidou para integrar a equipe. Integração que durou uns 40 anos, convivendo com ele. Ele sempre muito reservado, mas se você fosse admitido como membro, o caminho estava pronto. Ele foi o cirurgião de maior clientela privada do Estado de Alagoas. Além de bem preparado tinha ‘o spirit do funesse’. E foi o catedrático titular da clínica cirúrgica na Universidade Federal de Alagoas.
Equipe – Concluído o curso em 1968, o que pretendia fazer para seguir uma especialidade?
François- Eu já tinha estágio garantido para a cirurgia torácica com dr. Jessé Teixeira, maior expoente à época, inclusive foi pioneiro da cirurgia cardíaca no Brasil, na Beneficência Portuguesa do Rio de Janeiro. Uma espécie de Sírio-Libanês de hoje.
Rapaz, de última hora, meu amigo-irmão Dr. Alberto Antunes que estava no Porto, Portugal, um ano antes me convoca: “François, consegui estágio prá você no Hospital Santa Maria da Universidade de Lisboa, Portugal. Fiquei absorto, mas tomei a decisão: vendi meu carrinho e transformei em dólar, tudo sem avisar a papai, que eu tinha certeza, não ia concordar. De Lisboa passei um telegrama. De Além-mar, nada mais poderia ofuscar meus planos. Lá tive a sorte de cair na equipe do Prof. Cid dos Santos, um dos pioneiros da cirurgia vascular, que junto com Martorell de Barcelona, conseguiram arrancar a angiologia cirúrgica do território da cirurgia geral e fincá-la como especialidade.
No ditado popular, ‘Deus traçou certo por linhas tortas”. Após 02 anos tinha feito minha formação de cirurgião vascular. Convidado para ser cirurgião na África ocidental, declinei e retornei à nossa Maceió. Entristecido , quase deprimido com as condições precárias tecnológicas apresentadas na capital, desejei retornar à Lisboa, mas meu grande Mestre Dr Abílio, me apaziguou: - calma François, depois tudo se arruma. Assim aconteceu. Mas naquela época, década de 70, meio século atrás, até emprego para médico era difícil. Eu mesmo, iniciei na cadeira de Ginecologia com a mestra Dra. Maria das Vitórias Pontes de Miranda na cabeça, coordenando: a primeira mulher cirurgiã a operar em Alagoas. E operei durante um tempo no Hospital do Pilar, perto da capital e tinha as condições necessárias para o ato cirúrgico.
Acontecimento pitoresco
Com essa disponibilidade para o ensino, alunos de grande capacidade logo se achegaram a mim e acompanharam-me no Pilar. Certa noite, os meninos, resolveram sair com umas meninas alegres em canoa na lagoa do Sul, a Manguaba. Depois do contubérnio, retornam e a lagoa é profunda. Não sabiam nadar. Um deles caiu na água e foi o maior sufoco para salvá-lo. Um deles foi o dr. Isaac Lima, grande cirurgião, já partiu posso dizer, porém dois continuam vivos, um deles em São Paulo. E o outro, além de grande cirurgião e personalidade da medicina alagoana, também é político. Não posso referir. Foi o que quase morre afogado, namorando nas águas da lagoa do Sul kkkkkkkkkkkkkkk O hospital antigo continua de vento em popa sob a mentoria cirúrgica do workaholic dr. Renato Rezende, cirurgião de escol de mais de 40 anos de atividades cirúrgicas, agora ampliadas com o belo e novo Hospital do Futuro do Pilar, com linhas moderníssimas, aguardando emendas parlamentares para dar a arrancada, enquanto abriu seu ambulatório.
Equipe- Nos fale da sua carreira cirúrgica de quase 60 anos.
François – Eu amei desbragadamente a medicina e a cirurgia. Assim que aposentei, sonhava operando. Minha vida foi minha profissão. Sem restrição de dia ou noite,a quem precisasse de mim. Não teve domingo, não teve feriado, que não tenha me dedicado. Geralmente, os filhos de médicos são traumatizados com essa exigência da profissão sobre a família do médico.Nunca extorqui meus doentes, estive atualizado a vida inteira e cada vez que um doente meu complicava ou morria eu pedia ajuda ao Absoluto como o grande cirurgião brasileiro Fernando Paulino(1908/1990).
As frustrações com as decepções com colegas nunca me amarguraram, serviram para amadurecer. Tracei uma linha ética pessoal e durmo serenamente e em paz. A ambição argentária é demasiada atualmente, mas é que a sociedade mudou e também os médicos, nela inserida.
Equipe – O sr. fez shunts(anastomoses veno-venosas para tratar a hipertensão portal e varizes de esôfago, seguindo a Escola do Prof. Abílio Antunes, mas depois abandonou e preferiu abraçar método não shuntista. Por que fez essa escolha?
François – Apenas cirurgião arrojado consegue fazer um shunt. O dr. Abílio foi o segundo no Brasil a fazer essa técnica. Nós dominamos o método com ele, porém nos meus estudos observei, que os doentes não apresentavam hemorragia pelas varizes mas tinham altos índices de encefalopatia. Não hesitei em voltar aos métodos não shuntistas adotados pelo prof. Rodrigo Ramalho. De quem fui grande admirador e aprendi tanto também com ele, que ainda penso em escrever sua biografia. Outro Mestre arrojado na cirurgia. Só eu tenho mais de 800 fichas de pacientes operados de hipertensão portal.
Equipe- Prof. todo cirurgião precisa de interlocutor e sua relação com os doentes e familiares?
François – Olha de todos eles, quem operava mais bonito François- O interlocutor da minha geração foi Prof. Fontan, também outro cirurgião arrojado com quem eu podia discutir qualquer Caso. Foi pioneiro da cirurgia laparoscópica em Alagoas e se projetou internacionalmente com os trabalhos de megaesôfago e nós na hipertensão portal, embora ele também tenha tido grande experiênia com shunts.
Quanto aos doentes nunca tive problema com doentes nem familiares. Explicava tudo e pontuava sem alarde, nem entusiasmos falsos. Nunca retive doente que não quisesse ficar comigo e se quisesse ouvir outra opinião deixava livremente, inclusive para alta a pedido. Mas fazendo assumir as responsabilidades, porque se alguma coisa dar errado eles podem querer lhe implicar.
Equipe- Prof. se os profs. Ib Gatto, Abílio Antunes e Rodrigo Ramalho tivessem se unido, a cirurgia alagoana teria disparado na década de 70. O que nos diz sobre isso?
François – Olha de todos eles, quem operava mais bonito foi o Ib Gatto. Era ambidestro. Operava com as duas mãos.Dr Abílio era muito seguro e Dr. Rodrigo dominava qualquer técnica de urgência e ainda era capaz de descobrir novos acessos nos meandros técnicos. Mas quero lhe dizer que aquelas dissensões entre as estrelas, na prática era amena. Por exemplo, o Ib aceitava que eu frequentasse e até auxiliasse cirurgias dele; e sabia que eu trabalhava com Abílio. E dr. Abílio sabia também e recebia cirurgiões que trabalhavam com o Ib Gatto, como o dr. Joseane Granja. Dr. Joseane pediu a mim e levei-o para ver dr. Abílio operar. Essa batalha das estrelas era sutil e vigorosa.
Equipe- Prof. e quanto à fatuidade da vida? O efêmero?
François – Todos são iguais, não tem nada de diferente. O homem, o ser vivo de uma maneira geral, não é absolutamente nada. O que salva um pouco é quando se realiza alguma coisa. Fazer o bem aos outros, a quem precisar de nós. O homem precisa de medicina até para nascer. Entendeu? Nós não somos absolutamente nada. Por quê? Eu tô aqui, de imediato posso sofrer um infarto e morro aqui, agora. Tudo é efêmero.
Posso até não nascer. Uma criança vai...nascer e vem o parto, faz-se e pode morrer ali mesmo. Não tem segurança. Agora, porque o cara vai ser importante?, Do mesmo jeito, ou mais tarde ou mais cedo, não permaneceu... Então, o que tem te fazer ? Fazer o bem aos outros e não olhar a quem. A mão esquerda não vê o que a direita faz, é sabedoria bíblica.
Equipe- Professor, uma última mensagem para os jovens médicos.
Prof. François – A profissão é árdua e exigente. Ninguém ficará rico exercendo a profissão com dignidade, mas será feliz. O cirurgião, lembrando o Papa Pio XII ao receber os cirurgiões, em Roma no ano de 1948: “mesmo quando não est;a em jogo a própria vida, dispondes – e disso estais plenamente conscientes – de duas grandes coisas: a integridade do corpo e a misteriosa realidade do sofrimento humano”.
Não esqueçam nunca o grande psiquiatra Jung: - ao tocar uma alma humana, seja simplesmente outra alma humana.
Equipe- A última pergunta: por que a cirurgia é eterna?
François - Porque agora mesmo, em algum lugar do mundo alguém estará precisando de um cirurgião para lhe curar ou atenuar não só a lesão orgânica, mas o mistério insondável do sofrimento humano em sua existencialidade. O cirurgião, como disse o Papa Pio XII, ao receber os cirurgiões em Roma em 1948: “ mesmo quando não está em jogo a própria vida, dispondes – e disso estais plenamente conscientes – de duas grandes coisas: a integridade do corpo e a misteriosa realidade do sofrimento humano”.
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do EXTRA



