Nem a enchente acabou com o mundo: está nos livros
Texto de Álvaro Madeiro – médico e prof. da UFCE
Era dia ordinário; um final de tarde. Antônio acabara de folhear, na livraria próxima de sua casa, as crônicas da escritora Tatiana Salem Levi com o provocativo título: O MUNDO NÃO VAI ACABAR!
Textos esperançosos, plenos de utopias ou, como querem outros, protopias, para falar do processo histórico, da vontade inteligente e sensível de homens e mulheres; da capacidade de apresentar alternativas quando “as mãos tecem apenas o rude trabalho/ e o coração está seco” – diviniza o nosso poeta itabirano.
A tarde insistia em sua rotina morna. Mas logo o despenteado primo do Antônio apresentara a todos os que hibernavam naquele bairro a menina Rivânia. Como se a menina ultrapassasse as crônicas de Tatiana para dizer às pessoas que um país não se edifica no abandono das esperanças: O MUNDO NÃO ACABOU!
Em meio à tragédia das enchentes, essa garota pernambucana de oito anos de idade é instada por sua avó: “Filha, querida, coloque tudo de mais importante para você nessa mochila e vamos sair daqui o mais rápido...”. Horas depois, numa entrevista televisiva, a menina revelou que salvara o que lhe parecia o mais importante: os seus livros.
A cena foi registrada em Várzea do Una, em São José da Coroa Grande, uma das cidades em estado de emergência. Cidade pela qual tantas vezes passei em busca de minha ancestralidade alagoana nesses mais de quarenta anos em que sou cidadão fortalezense.
Em outro veículo de comunicação, ao ser novamente entrevistada, e diante de sua mochila, a menina voltara a falar de suas motivações: “[...] Meu futuro! Meu futuro está aqui nesses livros”.
Rivânia sugere movimentos de afirmação da vida em tempos tão sombrios – a aquisição de ferramentas básicas do pensamento e da linguagem, advindas da disciplina e do esforço da leitura dos livros, das pessoas e do mundo. Novamente, é de nosso itabirano que vem a poética desse momento: “Chegou um tempo em que não adianta morrer/ Chegou um tempo em que a vida é uma ordem/ A vida apenas, sem mistificação”.
Suspeito que os ensinamentos do filósofo francês Edgar Morin contidos em seu livro “Ensinar a viver” já tenham alcançado essa menina: “Aprende-se a viver por meio das próprias experiências, primeiro com a ajuda dos pais, depois dos educadores, mas também por meio dos livros, da poesia, dos encontros. O pensamento é, mais do que nunca, o capital mais precioso para o indivíduo e a sociedade” (Morin, 2014).
Que menina radical, telúrica! Rivânia parece afirmar, como o fazem os filósofos e os poetas, a possibilidade de transformação do desencanto e do desespero em criação e afirmação da vida.
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do EXTRA



