“Todo médico tem um remédio que nenhuma farmácia vende: sua palavra”
“Se a ciência médica não quer ser rebaixada à condição de ofício, deve ocupar-se de sua história e tratar convenientemente dos velhos monumentos que lhe foram legados pelo passado.” Émile Littré (1801/1881); médico, lexicógrafo, filósofo e historiador da medicina.
ENTREVISTA MAGNA-3: DR. MILTON HÊNIO DE GOUVEIA
ENTREVISTADORES: JOÃO BATISTA NETO – médico e professor da Ufal. Membro Revisor das Revistas Journal of Gastrintestinal Surgery (EUA) e da Hepatology da American Association of the Liver Diseases (EUA). ÁLVARO MADEIRO LEITE – Titular Doutor de Pediatria da Universidade Federal do Ceará.
INTRODUÇÃO
“O MILTON, João, é uma unanimidade só. Do filho do carroceiro ao Presidente da República. Cuida de todas as crianças que lhe acorrem, sejam pobres ou ricos.”, bradou Dr. Dirceu Falcão.
Essa disposição inata para a lhaneza, civilidade e de janelas abertas para quem o busque como médico ou como pessoa é uma inerência gestada pelo Absoluto, que foi nutrida pelo avô materno, quando sendo dos avôs o mais pobre, proporcionou-lhe a construção de memórias, começando com os passeios semanais de bonde e com direito à parada para algodão-doce, sorvetes, sucos e quebra-queixo. Também cachorro-quente, de vez em quando. Esse mesmo avô o instruía no trato com as pessoas: – Miltinho, cumprimente as pessoas; fale com elas. E o pai o amava tanto, que dizia sempre em direção a ele: – Minha vida!
O outro avô, rico e nome de avenida na Pajuçara, era médico, tinha vida atribulada, e dele nenhuma memória ele guarda, pois nunca foi despertado para isso. Muito distante, nenhuma intimidade.

Dr. Milton aposentou-se logo após a pandemia, aos 60 anos de exercício da pediatria, em 2022. Formado no ano de 1962 na Faculdade de Medicina de Alagoas/UFAL, comemorou o Jubileu de Diamante de sua fundação (1950).
Nesse ínterim já tinha recebido todas as comendas, inclusive a mais recente e mais importante comenda do Estado de Alagoas: a Tavares Bastos. Membro das Academias Brasileira e Americana de Pediatria. Até Balé já lhe foi dedicado, com direito a libreto.
Com a esposa Myrza gerou três filhas e um menino, enumerados por ordem: Andréa, empresária de hotelaria, Roberta, idem, Antônio Carlos (Cacá), advogado nos tribunais superiores de Brasília, e Fernanda, psicóloga. Dedicada secretária que digita e arruma todo o trabalho de secretariado dos seus artigos e compromissos. Já tem dez netos e onze bisnetos.
O trabalho de benemerência de dr. Milton foi de tal monta que angariou 800 afilhados, todos batizados pelo Monsenhor João Beckmans. E todas as vezes, lá ia D. Myrza, madrinha com ele, até o dia em que o clérigo chiou: – Oh Miltinho, seus batizados estão atrapalhando minha missa. Você traz de pacote: dez batizados por vez.
E D. Myrza bradou: – Miltinho, você devia ter sido padre, de tanta caridade praticada em atendimentos.
Proprietário da clínica infantil AMI (Assistência Médica Infantil), foi um redundante fracasso comercial, porque até soro comprava e o dispunha sem custos para criança que virou governador em Alagoas, e o pai, pobre na época, virou senador.
Membro das entidades culturais alagoanas: Academia Alagoana de Letras, Instituto Histórico de Alagoas e Associação Alagoana de Imprensa.
Não enriqueceu, mas em sua felicidade apregoa: as melhores coisas são dadas de graça: um abraço, um beijo, uma palavra de solidariedade...
ENTREVISTA
Equipe (João Batista e Álvaro Madeiro)
Entrevistado: MILTON HÊNIO
Equipe – Como despertou a vocação para a pediatria?
Milton Hênio (MH) – Eu sempre fui naturalmente solidário e atento para ajudar a todos que precisavam, antes de fazer vestibular para a medicina. De modo que foi facílimo quando veio a medicina e logo cedo me integrei no estágio desde o segundo ano.
Equipe – Lembra-se do primeiro paciente atendido?
MH – Não lembro porque faz muito anos e não foi coisa grave. Era um caso de rotina.
Equipe – Qual a sensação com o primeiro paciente que morreu?
MH – O primeiro que morreu foi de um acidente. Ele foi para mim, trabalhei com afinco e despojamento, mas era um trauma craniano muito grande, numa época sem UTI, e morreu. Perdemos.
Equipe – Qual o caso mais inusitado que atendeu?
MH – Um motorista da Expresso Palmeirense certa vez me aborda: – Dr. Milton, eu só tenho um filho, que adoece muito. O senhor é quem vai cuidar. Mas tem uma coisa: o senhor vai me perdoar, eu não posso lhe pagar. Sou tão só um motorista de ônibus.
– Não se preocupe, cuidarei dele com o maior prazer, eu lhe disse. Cuidei dele. Cada vez que adoecia, ele o trazia de Palmeira dos Índios, até que completou 12 anos e o liberei da pediatria. O tempo passou e certo dia, minha filha e secretária, diz: - Pai, tem um homem aqui querendo falar com o senhor; é um motorista com o filho. – Mande-os entrar. O menino, agora rapaz, tomou a palavra. – Dr. Milton, hoje eu não venho lhe pedir nada. Eu venho convidá-lo para almoçar comigo na minha formatura, no Itamaraty. Sou um diplomata, acabei de ser designado para a embaixada brasileira na Suécia. A felicidade irrompeu em mim como uma avalanche...
Equipe – “A gente olha o mundo só uma vez: durante a infância. O resto é só lembrança”, assinalou Louise Gluck, Nobel de Literatura. Apresente-me uma visão poética da infância na esteira desse pensamento.
MH – Fica só lembrança. Lembrança fica gravada na nossa imagem. A primeira imagem. Tudo que você viu. Como é péssima a situação de uma criança que tem um pai estúpido e grosseiro. Hoje em dia o mundo está mudando, os casamentos não duram mais que 60 dias, e alguns chegam a cinco anos no máximo. A parte afetiva do mundo está desaparecendo, o que é uma pena.
Equipe – Em 1982, a Sociedade Brasileira de Médicos Escritores o indicou como Presidente Nacional, porque queriam que o senhor fizesse o Congresso da entidade aqui.
MH – Conheci muitos nesse Congresso e busquei fazer o melhor que pude. Era Governador o futuro Presidente Fernando Collor, a quem apelei: – Governador, a Sociedade está mais lisa que buraco de cobra. – Conheço muito a dona do Hotel Jatiúca, vou pedir para ela não cobrar nada. Ele me apoiou sem restrições e me disse: – Vá falar com a sra. Helena Lundgren, proprietária do Hotel Jatiúca, e ela tudo fará pelo senhor.
O Congresso foi um sucesso. Vieram 150 médicos do Brasil inteiro com suas famílias. O Estado deu passeio de catamarã, ônibus etc. Eu participei de 26 congressos pelo Brasil inteiro. Foi um entusiasmo tão grande pelas belezas de Alagoas que me despedi com esse poema: “Alagoas é um paraíso encantado, que sendo feita de flores foi por Deus abençoado. Aqui a fartura mora, temos água a toda hora e verdura por todo lado. Temos carapeba, bagre, coco, tomate, limão, carne de porco, bode, galinha gorda e capão. E depois de tudo comprar, ainda sobra um real pra gente comprar sabão. Ah, por isso, meus amigos, eu falo bem das Alagoas. Eu acho lindo Maceió. Vão vendo as canoas aqui, a gente brinca, a gente dança, temos reisado e chegança e muitas coisas boas. Ah, então vou voltar aqui sempre”.
EQUIPE – Com essa dedicação plena à medicina, os filhos reclamaram da sua ausência?
MH – Não. Ao contrário, me ajudaram bastante, começando pelo filho Cacá e minhas filhas, começando com Andréa. Todos são organizadíssimos. Agradeço a Deus pelos filhos que me presenteou. O meu genro morreu moço, e os quatro netos dele tomam conta da rede de hotéis que eles têm em Maceió. Dão conta do recado e proporcionam aos hóspedes aquilo que é de graça: beijo, abraço, sorriso, bem-querer. Eu ensino a minha neta a fazer poesia para os hóspedes. Ela faz de monte, e eles saem felicíssimos.
EQUIPE – Como era a pediatria quando começou a exercê-la? Quais foram as grandes mudanças na década de 60 do século passado?
MH – Começa logo com o tempo da consulta. Durava quase uma hora. Os avanços aconteceram na pediatria nas doenças pulmonares e nas leucemias.
EQUIPE – Quais colegas eram seus interlocutores nos casos difíceis?
MH – Meu mentor, Dr. Adail Pereira, Terezinha Ramires, Afonso Lucena, Luiz Sampaio. Eu lidava com todos, e todos tinham desejo de acertar, mas quando a coisa era complicada, eu ficava admirado com a humildade do Luiz Sampaio. Certa vez vi dez vezes cada menino por semana, até que ele ficasse bom. Era um carinho que tinha com todos nós!
EQUIPE – Como o senhor equilibrava a vida pessoal com a vida profissional?
MH – Eu procurava arrumar as coisas pessoais primeiro e depois sempre sobrava uma vaguinha para batizar uma criança. Cheguei a batizar dez crianças por vez. Isso importunou o padre. Mirza me acompanhou a todos com estoicismo. Quando cansou, disse: – Meu amor, você devia ser padre! – Não, retruquei: como poderia amá-la? Padre não pode namorar oficialmente. No final, tive mais de 800 afilhados... Era muito batizado que eu fazia toda semana. Depois que passei a integrar o quadro de médicos da Polícia Militar, me integrei às ações sociais da Polícia. Fazia palestras, casamento de soldados. Eu nunca faltava, para dar alegria a eles todos. Tirei uma hora por semana para ensinar às mães como cuidar dos filhos. Tudo isso me fazia bem. Insistia para que não brigassem na frente dos filhos. Porque essa imagem é indelével na vida dessa criança, que pode virar um adulto agressivo e violento.
EQUIPE – O senhor foi um médico de crianças dos carroceiros do Vergel, das crianças ricas de Maceió e do Presidente da República. Como lidava com essa diferença social?
MH – Me adaptei rápido. Com os potentados, cultura e conversa à sua altura. Com os pobres, a conversa corriqueira. Contanto que todos ficassem satisfeitos. Minha mulher mandava lanche para mim e para os clientes também. Minha filha Roberta foi minha enfermeira durante 35 anos. Atarefado, eu saía dez, onze da noite, mas felicíssimo.
EQUIPE – Como se manteve atualizado?
MH – Fui a muitos congressos nacionais e internacionais, e assinava revistas de bom padrão para atualização. Afora as revistas médicas que assinei.
EQUIPE – Fale-nos dos desafios na profissão. De quais obras sociais na pediatria participou?
MH – O primeiro foi escrever. Iniciei a convite do Senador Arnon de Mello. Quando chegou a TV, fui integrado tranquilizando e orientando os candidatos. D. Leda, a matriarca dos Collor de Mello, me interpelou: – Milton Hênio, você não gostaria de fundar a APAE (Associação dos Pais e Amigos dos Excepcionais) em Macei? Dispus-me, e junto com Lourdinha Vieira fundamos a APAE. Passei 14 anos lá. Hoje é um filho da Lourdinha, Leo, quem toma conta da APAE. Passei lá 28 anos no total, e agora minha filha Nanda, psicóloga, é quem colabora.
EQUIPE – O senhor nos disse que gostava de poesia. O senhor escrevia poesia? Fez algum livro de poesia?
MH – Fiz e vou lhe dar um exemplar. Publiquei 13 livros no total, sendo de temas médicos pediátricos e outros.
EQUIPE – Quais foram seus maiores sucessos na profissão?
MH – Meu primeiro sucesso foi o social. Eu nunca recusei convite de aniversário de menino, batizado, casamento, nunca deixei de ir, tanto que no final contabilizei 850 afilhados. Certo dia, fui à posse, em Palácio, do governador Fernando Collor. Mal chego lá, minha enfermeira me localiza e diz: - Deixaram uma criança recém-nascida na AMI (Assistência Médico-Infantil). O que faço? Pensei: Deus me ajudará. – Recolha a criança, agasalhe e alimente. Quando eu chegar, resolvo. Em palácio fui apresentado a uma carioca solteirona que desejava criar uma criança. Relatei o ocorrido e a possibilidade dessa adoção. A senhorita me acompanhou em seguida e encantou-se com a criança. Contratou uma enfermeira para levá-la até o Rio. O tempo passou. Hoje essa criança é piloto internacional da Latam. Haverá destino?
EQUIPE – O senhor tem inata a inteligência da comunicação?
MH – Repito a cada instante para meus jovens colegas: – Todo médico tem um remédio que nenhuma farmácia vende: a palavra do médico. Comunicar-se em medicina é o start para o diagnóstico. Sem esse, nenhuma terapêutica faz sucesso. Comunicar-se com os doentes, com as famílias... Após ter convidado o Senador Arnon de Mello para uma palestra na Sociedade de Medicina, ele me convidou para escrever semanalmente no jornal Gazeta de Alagoas, agora com 92 anos. E o convite se estendeu à TV Gazeta, quando chegou aqui em 1975 (jubileu de ouro este ano).
No início, através de radioamador, eu escrevia, e um amigo do Espírito Santo revisava e me devolvia tudo prontinho. Há 55 anos escrevendo na Gazeta, dominei o ofício a ponto de facilmente ocupar as 450 palavras que o espaço exige e delimita. Não aprendi. Recebi a ordem superior: limite em tantas palavras. No início, cortava e cortava. Escrevia na segunda-feira, e na quarta-feira entregava o artigo.
Equipe – Como desenvolve seu método de criação?
MH – São os assuntos que eu vejo nas revistas, nos jornais. O pessoal da Gazeta não tem igual. Deixo que eles cobrem o prazo, mas já estou com tudo pronto. O Diretor- Presidente Fernando James Collor de Mello é um menino de ouro, se derrama em afagos e gentilezas comigo. Muito educado. A cara do avô senador quando olhamos do nariz pra cima.
Equipe – Qual foi seu maior sucesso na profissão?
MH – O Alfredinho. Alfredo Gaspar de Mendonça, quando tinha seis meses. Ele me trata como se eu fosse o pai dele. É um bem-querer enorme. Acabou de me conceder uma comenda da Câmara dos Deputados.
Equipe – Qual a maior demonstração de amizade que recebeu?
MH – Isso é bíblico: “quem tem um amigo, tem um tesouro”. Meu pai adoeceu, o curso de medicina puxado, e meus amigos dividiram comigo a escala de plantão: cada dia, um dormia com ele. O Vergetti, um general de exército posteriormente quando progrediu na carreira. Da minha turma já morreram sete. Cada dia, minha floresta vira uma capoeira.
Equipe – A qual urgência mais inusitada teve de atender?
MH – Eu estava no consultório e o telefone disparou: – Venha correndo, seu menino despencou de dois metros no banheiro! Fui mais rápido que uma bala. Chegando lá, Deus me protegeu: o Cacá apenas quebrou o braço. Agora descubra como isso aconteceu. O Cacá adolescente, brechando a empregada tomar banho nua, mergulhado na cena fescenina, esqueceu-se de se equilibrar, e pá, despencou. Não sei se estava praticando o ato solitário...
Equipe – Qual dia foi o mais feliz da sua vida?
MH – Foi 15/12/1962. O céu belíssimo, coberto de estrelas, o dia da minha formatura. E a presença do meu pai naquele evento, desenganado há muitos anos pelos médicos. Repetiu o que me disse a vida inteira: “Minha vida!”. Agora, 63 anos depois, quase despenco de emoção. Tirei-o do hospital; ele foi de ambulância. Quinze dias depois desta epifania, partiu.
Equipe – Uma última mensagem para os jovens.
MH – Somos únicos, ninguém se repete, mas além de dar a vida, Deus nos concedeu um dom maravilhoso: a liberdade de escolha. Isso permite que cada um se movimente e faça escolhas. Deus não impõe, apenas propõe. Não nos cobra, nem nos castiga, apenas permite que a vida vá encontrando caminhos e construindo respostas. Muitas pessoas insistem em deixar a espiritualidade em segundo plano. Outros até vivem como se Deus não existisse. Mas há os que renovam diariamente a presença de Deus em tudo. Deus não cansa de vir ao nosso encontro ao amanhecer de cada dia.
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do EXTRA



