Tânia de Maya Pedrosa: a senhora da cor, da memória e da liberdade
Texto de João Aderbal - médico e da Academia Brasileira de Mastologia
Naïf: do francês, “ingênuo”, “inocente”. Na boca dos críticos de arte, porém, a palavra não traz desdém. Traz encantamento. Define a expressão plástica que não se curva aos cânones acadêmicos, que nasce livre, instintiva, como quem pinta o mundo com os olhos da infância e a alma carregada de memória. Se o Brasil tem uma senhora dessa arte, essa senhora é alagoana, nasceu em Maceió em 27 de outubro de 1933 e atende pelo nome de Tânia de Maya Pedrosa. Aos 92 anos, continua sendo uma das figuras mais vivas e vibrantes da cultura brasileira.
Filha do empresário e ambientalista Paulo Pedrosa e da professora de piano clássico Benita Mathilde, Tânia cresceu entre o rigor da partitura e a sinfonia do mundo. A casa-grande da família, no interior de Alagoas, ensinava etiqueta, recato, hierarquias. A menina, no entanto, preferia os silêncios da imaginação. Aos 14 anos, espantava os padres com confissões mais filosóficas do que pecaminosas. Diziam-lhe: “A senhorita não fala como uma pessoa de 14 anos”. Era verdade. Não se tratava de rebeldia ruidosa, mas de uma lucidez precoce, destinada a romper moldes por dentro, com elegância e coragem.
Formou-se em Direito pela UFAL. Passou pelo Rio de Janeiro, mergulhou no mundo da moda como designer refinada, frequentou ambientes sofisticados da cultura e das artes. Tudo isso, no entanto, era apenas o cenário. O essencial ficava guardado, como quem cultiva em segredo o próprio jardim. Durante oito anos, Tânia pintou em silêncio. Quadros escondidos como cartas de amor ainda sem destinatário. Uma pintora secreta, esperando o momento de se revelar.
Esse momento chegou em 1998, quando o Museu Internacional de Arte Naïf, no Cosme Velho, no Rio, premiou suas obras. Foi o rompimento do silêncio e a abertura de uma porta definitiva. O Brasil conheceu, então, uma artista com voz própria: instintiva, sim — mas culta; espontânea — nunca tola; afetiva — jamais superficial. O naïf de Tânia era tudo, menos ingênuo. Desde o início, ela se impôs como senhora da cor e da forma.
As suas telas falam das coisas simples com uma beleza desconcertante: festas populares, folguedos de rua, religiosidades mestiças, procissões e terreiros, afetos miúdos e lembranças enormes. Falam, sobretudo, de um Brasil que resiste no afeto e se ergue pela estética do povo. Não é folclore decorativo, é comentário social em voz baixa. Crítica com cor. Denúncia com doçura. Política em estado de poesia.
Com o tempo, vieram os salões, as bienais, os prêmios, as viagens, as homenagens. Tânia marcou presença em Bienais Naïfs do Sesc-SP, recebeu a Ordem do Mérito das Artes Plásticas de São Paulo (2008 e 2012), expôs no Brasil e na Europa, conquistou curadores, museólogos, críticos e colecionadores. Fez amigos que atravessam gerações: Aurélio Buarque de Holanda, Lêdo Ivo, Roberto Burle Marx, Fernando Lopes, Ceres Franco, Laurent Danchin. Eles viam, nela, mais do que uma artista: reconheciam a mulher culta, sofisticada, de conversa fina, capaz de combinar o rigor do olhar com a doçura da alma.
Mas Tânia nunca se contentou com o papel de “artista de si mesma”. Foi também escritora, curadora, organizadora do pensamento visual de sua terra. Reuniu, catalogou, interpretou. Publicou os livros Arte Alagoas I e II e Arte Popular de Alagoas, que se tornaram referências para quem quer compreender a cartografia afetiva e crítica da arte produzida no estado. Na coleção, viu política; na curadoria, um ato de amor. Descobriu artistas invisíveis, deu-lhes nome, rosto, contexto. Colecionou com método, escreveu com fervor, pensou com doçura.
Em 2019, aos 85 anos, abriu com brilho a temporada de exposições da Galeria Gamma, em Maceió. Entrava na sala com a naturalidade de quem está em casa: os quadros eram extensões de sua biografia. Ainda ensinava com os olhos, com o gesto, com a maneira como olhava o próprio trabalho — sem narcisismo, mas com uma clareza tranquila de quem sabe o lugar que ocupa.
Em 2025, o círculo se completou. A mesma Universidade Federal de Alagoas onde um dia Tânia se formou em Direito decidiu lhe devolver o gesto em forma de reverência: concedeu-lhe o título de Doutora Honoris Causa. Não apenas por suas pinceladas, mas por tudo o que elas carregam: um Brasil de dentro, um Alagoas profundo, um povo que dança e resiste. Não era só uma honraria acadêmica. Era um rito. Um país que, por um instante, se reconhecia no espelho da própria cultura popular.
Nesse dia, nenhuma toga foi suficiente. Havia outros mantos — invisíveis, mas pesados de sentido. Eram feitos de história, de memórias, de fidelidade ao chão em que nasceu. As medalhas mais importantes brilhavam na retina dos que conheciam sua trajetória. O que se via ali era uma consagração afetiva: da intelectual e da artista, da colecionadora e da criadora, da mulher que soube enxergar valor onde tantos viam apenas “artesanato” ou “curiosidade folclórica”.
Tânia, afinal, sempre foi mais do que pintora. É uma espécie de decana da liberdade, numa época em que os cânones ainda tentam definir o que “pode” ou “não pode” ser arte. A cultura popular, que tantos insistem em reduzir a adereço, ela tratou como coisa séria: campo de estudo, território de pesquisa, espaço de respeito. Sua pintura naïf não é evasão; é presença. Não é fuga da realidade; é outra forma de encará-la.
Hoje, aos 92 anos, Tânia de Maya Pedrosa é menos um nome e mais um gesto. Um traço. Um tempo. Uma força. Uma cor que não se apaga. Seu naïf é ancestral, crítico, feminino, vibrante. É uma arte que devolve ao espectador a capacidade de ver — ver de verdade, sem pressa, com o coração atento e a alma desarmada.
Se nas universidades há decanos, no Brasil das artes plásticas Tânia é isso tudo ao mesmo tempo: senhora da cor, guardiã da memória, doutora da cultura popular. Uma mulher que pintou o país sem pedir licença, mas com a graça discreta de quem já sabia, desde menina, que o mundo fica um pouco mais justo e suportável quando é visto com afeto — e com coragem.
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do EXTRA



