Marcantes desobediências
De vez em quando me vêm à memória coisas acontecidas na nossa casa da Rua do Macena, hoje Cincinato Pinto. Dois fatos intrigantes que só poderiam acontecer pela falta de amadurecimento, característico da tenra idade. Ainda bem garoto, talvez com meus cinco anos, peguei a mania de estar sempre com uma pequena esfera de aço na boca. Era uma válvula usada no conta-gotas das garrafas de bebidas destiladas. Quem sabe eu já não sentia algum resquício do uísque? E todos os dias a mesma coisa.
Quando saía para brincar, lá ia a bolinha na minha boca. Lógico que não faltaram conselhos os mais diversos, de ameaças a simples engasgos, até a mais grave possibilidade desse objeto alojar-se no pulmão. E todos diziam: “Cuidado com esse negócio, se engolir, você pode até morrer”. E entrava por um ouvido, saindo pelo outro. E lá ia eu todos os dias, correndo pelo grande quintal da casa, alegre e contente, mas sempre com a bolinha na boca, até que um dia, sem que pudesse imaginar, as ameaças se concretizaram.
Após uma corrida, cansado, respirei profundo, e a esferinha de aço sumiu laringe adentro. Não tive outro pensamento na hora. Gritei bem alto: “Morri”. E estatelei-me no chão. Agora dá para rir, mas o corre-corre foi geral. Não sabiam porque tal atitude, até que resolvi dizer que tinha engolido meu estimado brinquedinho. Daí em diante fiquei à espera de sua saída, que se deu quando ouvi um tilintar diferente na bacia sanitária. Fiz questão de resgatá-lo e guardar por muitos anos, símbolo de uma das minhas traquinagens.
Agora, vendo reportagens sobre a China e determinado inseto, lembrei de outra peripécia daquele garoto, agora já um pouco mais crescido. Nos fundos de nossa casa tinha um campinho onde, com os amigos da rua, jogava uma bolinha. Pois bem, o rachinha era puxado, exigindo muito esforço, apesar das diminutas dimensões do campo. Ao terminar, a sede era braba e, enquanto a turma saía, eu subia pela escada dos fundos que dava diretamente na copa-cozinha e ia sedento procurar um copo que, por mais que minha mãe reclamasse não ser para o uso diário, era sempre meu preferido.
Abria a porta do armário e na ponta dos pés pegava o objeto proibido. Já estava com a garrafa d’água na outra mão e ia colocando o líquido diretamente com o copo na boca. De chofre, senti que algo estranho desceu pela garganta. Com a experiência no recôndito do cérebro, olhei para o copo, e o que vejo? Uma outra pequena barata que conseguiu livrar-se de ser engolida. Desta feita não gritei morri, mas, com muita zoada pelo escândalo que dava, colocava o dedo na goela tentando regurgitar aquela intrusa. Sem êxito no intento, restaram-me os insuportáveis arrotos com aquele mau cheiro e a certeza de que não iria esperar sua saída como a da esferinha de aço, mas ficando a lembrança de duas marcantes desobediências.
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do EXTRA