colunista

Odilon Rios

Odilon Rios é jornalista, editor do portal Repórter Nordeste e escritor. Autor de 4 livros, mais recente é Bode Pendurado no Sino & Outras Crônicas (2023)

Conteúdo Opinativo

O causo do Mabílio e as bananas

12/03/2024 - 21:53

ACESSIBILIDADE


Existem personagens que carregam uma outra história. Não a formal, escrita, ensinada. Eles agregam gerações, muitas delas desprezadas ao extremo, e isso não impede que eles – estes personagens – sejam transformados, aos poucos, em resumos de narrativas universais e cruéis. As pessoas são as mesmas em todos os lugares e tempos: desequilíbrios, raivas, desesperos, ódios, amores, intrigas.

Quasímodo era o deformado corcunda de Notre Dame, do escritor francês Victor Hugo. Já o Siri tinha as pupilas desorganizadas, uma estranha expressão na face que se misturava aos delírios da loucura e a extrema pobreza. Andava com um pedaço de pau pelas ruas do Poço, em Maceió, no início dos anos 2000. Ficava violento e corria atrás de qualquer um que lhe chamasse do apelido odioso. Quem enfrentasse sentiria a virulência do cacete.

O Pezão vivia nos ônibus da capital, pedindo esmolas cheio de irreverência. Todos riam, mas o Pezão – apelido para os pés sempre descalços e desgraçadamente achatados e limados por todos os chãos ferozes – tem casa, mora em Matriz do Camaragibe, mas os surtos o empurram para as ruas, onde vive como mendigo e, vez ou outra, é apartado pela polícia em seus acessos de fúria.

A escritora Merandolina Pereira, no livro Cem Causos da Viçosa das Alagoas (Querida Prudência Editora, 2022) conta a história do Amabílio ou Mabílio, da Rua Nova em Viçosa. Morreu em 2019, nonagenário. Morava sozinho, quase isolado. Mais jovem, pescava no Rio Paraíba, frequentava a igreja e a feira, onde vendia aos sábados candeeiros, funis e raladores feitos de folhas de flandres. Juntava latas de óleo de cozinha. Cortava, dobrava, punha pregos. A criatividade Mabílio em livre desenho feito pela Inteligência Artificial dava a forma final. Isso lá nas décadas de 1970 e 1980, no tempo em que a feira trazia o mundo empilhado em carros e caminhões, misturando sons, culturas, modos de vida. Tempos da festa do Bom Jesus, de férias, quando os barquinhos de madeira e a cobra eram as atrações dos parques.

Mabílio sentava-se na porta de casa, em tamboretes de madeira fabricados por ele, lendo ou folheando a Bíblia ou mensagens evangélicas. Andava pela cidade, espalhava-se nas calçadas dos outros, entoava hinos evangélicos com sua voz desafinada e quase sempre ouvia um “cala a boca, Mabilho”. E ele não calava. A frase era repetida em outros contextos, definia as pessoas teimosas e gritalhonas.

Mabílio era a graça, Viçosa o palco. A comicidade e o sadismo. Mexer ou ameaçar o velho era de praxe. Ele revidava. Comia amendoim, banana e outras frutas e jogava as cascas pelas ruas. Divertia-se quando o povo escorregava. - Miserável, gritava um, reverberando palavrões. Para piorar, esculpia com sua faca amolada um enorme palito, para limpar os dentes e as ceras dos ouvidos. O nojo lhe dava uma sensação de poder sobre os outros, um controle do asco e o fogaréu do desprezo. Tornou-se centro das atenções.

Merandolina era criança quando jogou água por debaixo da porta de casa, no instante em que Mabílio sentava, comia bananas e jogava pelas ruas para sua próxima vítima. Neste dia, o fundo das calças do velho ficou molhado. E ele se levantou, insultando o mundo. Voltou no outro dia, reiniciando suas atividades indecorosas. Quando se aposentou, não vendia mais seus candeeiros na feira. Não foi mais para a igreja, não gritava mais os hinos. As pernas estavam mais fracas, mas, até antes de morrer, calçava sua chinela Havaianas, descascava suas bananas e atirava no chão. Seus passos, diz Merandolina, eram lentos, o olhar se distanciava da própria realidade e da vida. E morreu.banner

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do EXTRA


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