A Pedra de Sísifo e o Vestibular de 1974
Corria o ano de 1973, e no Colégio Estadual de Alagoas éramos todos sísifos em miniatura. O vestibular da Universidade Federal de Alagoas era nosso cume, e a pedra a ser rolada era o esforço de um ano inteiro de estudos. Não havia Plano B. A reprovação não era apenas um revés acadêmico, mas um mergulho em um “limbo” social, num tempo em que as universidades privadas eram uma realidade distante. O sucesso parecia ter um único nome: Medicina, Direito ou Engenharia.
Foi numa dessas tardes de sufocante expectativa que um burburinho percorreu os corredores: no auditório central, uma conferência sobre a obra de Graciliano Ramos, Vidas Secas. A palestrante era uma jovem que chegou com ares de princesa, bonita, altiva e envolvente. O que nos chocou, no entanto, não foi a sua presença, mas a sua história, que corria à boca miúda. Ela havia abandonado o segundo ano de Medicina, curso para o qual havia sido aprovada em primeiro lugar, para fazer um novo vestibular e se instalar no curso de Letras.
A Escolha Incompreensível
Minha cabeça rodou. Meu Deus, alguém deixaria a Medicina por Letras? A perspectiva de sobrevivência não seria infinitamente mais difícil? Para mim, que gostava de ler até bula de remédio e rótulo de caixas de fósforo, a sua decisão me atingiu como a pedra do mito de Sísifo, rolando montanha abaixo. A minha paixão por palavras e por fazer os jornaizinhos do colégio parecia um fardo, uma luta eterna e incerta numa realidade que só enxergava o sucesso no jaleco e no estetoscópio.
Foi preciso que o tempo passasse e a história ganhasse corpo para que a verdade viesse à tona. A jovem de 1973 era Vera Romariz, neta do poeta Sabino Romariz, figura bem assentada no panteão literário alagoano. Sua escolha não foi um capricho, mas um ato de coragem imensa, a ponto de se socorrer da mãe para aplacar a incompreensão do pai. Naquele tempo, ninguém entendeu.
Kafka e o Triunfo da Vocação
Recentemente, estive em Praga, no museu de Franz Kafka. Lá, o que me estremeceu foi a angústia de sua luta eterna entre vocação e profissão. Kafka, um dos maiores escritores do século XX, debateu-se a vida inteira entre o chamado da literatura e o pragmatismo de seu trabalho como “guarda-livros” em uma companhia de seguros. Ele morreu sem conhecer o sucesso; sua genialidade foi oprimida por uma vida de burocracia.

Vera Romariz, por outro lado, foi o triunfo de Kafka. Onde ele se debateu, ela agiu. Enquanto ele vivia uma guerra interna, ela assumiu explicitamente sua vocação desde o início. A história de Vera Romariz é a prova viva de que a coragem de seguir o talento pode vencer o pragmatismo do mercado. Sua escolha, que parecia loucura em 1973, a transformou na Diva da Literatura Alagoana. Por anos, ela foi professora de literatura na nossa Ufal; sua poesia é estudada, sua obra é celebrada.

Hoje, os jovens continuam esmagados. Não mais pela escassez de vagas, mas pelo excesso de opções de carreiras. Como bem definiu o filósofo Byung-Chul Han, vivemos na “sociedade da transparência e do cansaço”, onde a escolha de uma carreira se tornou uma decisão existencial.
Escolher uma profissão aos 16/17 anos continua a ser uma decisão dificílima. Para uma vida inteira. Mas a história de Vera Romariz ressoa como um lembrete: a verdadeira realização não está em se encaixar nas exigências do mercado, mas em ter a coragem de ser quem você realmente é, transformando sua paixão em seu destino.
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do EXTRA