É professor adjunto da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) e cirurgião especializado em cirurgia digestiva. Graduou-se em medicina pela Ufal (1980) e é mestre em gastroenterologia cirúrgica pela Escola Paulista de Medicina/Unifesp. Atua como docente e cirurgião na área de cirurgia digestiva da Ufal.

Conteúdo Opinativo

A Pedra de Sísifo e o Vestibular de 1974

12/09/2025 - 06:00
A- A+

Corria o ano de 1973, e no Colégio Estadual de Alagoas éramos todos sísifos em miniatura. O vestibular da Universidade Federal de Alagoas era nosso cume, e a pedra a ser rolada era o esforço de um ano inteiro de estudos. Não havia Plano B. A reprovação não era apenas um revés acadêmico, mas um mergulho em um “limbo” social, num tempo em que as universidades privadas eram uma realidade distante. O sucesso parecia ter um único nome: Medicina, Direito ou Engenharia.

Foi numa dessas tardes de sufocante expectativa que um burburinho percorreu os corredores: no auditório central, uma conferência sobre a obra de Graciliano Ramos, Vidas Secas. A palestrante era uma jovem que chegou com ares de princesa, bonita, altiva e envolvente. O que nos chocou, no entanto, não foi a sua presença, mas a sua história, que corria à boca miúda. Ela havia abandonado o segundo ano de Medicina, curso para o qual havia sido aprovada em primeiro lugar, para fazer um novo vestibular e se instalar no curso de Letras.

A Escolha Incompreensível

Minha cabeça rodou. Meu Deus, alguém deixaria a Medicina por Letras? A perspectiva de sobrevivência não seria infinitamente mais difícil? Para mim, que gostava de ler até bula de remédio e rótulo de caixas de fósforo, a sua decisão me atingiu como a pedra do mito de Sísifo, rolando montanha abaixo. A minha paixão por palavras e por fazer os jornaizinhos do colégio parecia um fardo, uma luta eterna e incerta numa realidade que só enxergava o sucesso no jaleco e no estetoscópio.

Foi preciso que o tempo passasse e a história ganhasse corpo para que a verdade viesse à tona. A jovem de 1973 era Vera Romariz, neta do poeta Sabino Romariz, figura bem assentada no panteão literário alagoano. Sua escolha não foi um capricho, mas um ato de coragem imensa, a ponto de se socorrer da mãe para aplacar a incompreensão do pai. Naquele tempo, ninguém entendeu.

Kafka e o Triunfo da Vocação

Recentemente, estive em Praga, no museu de Franz Kafka. Lá, o que me estremeceu foi a angústia de sua luta eterna entre vocação e profissão. Kafka, um dos maiores escritores do século XX, debateu-se a vida inteira entre o chamado da literatura e o pragmatismo de seu trabalho como “guarda-livros” em uma companhia de seguros. Ele morreu sem conhecer o sucesso; sua genialidade foi oprimida por uma vida de burocracia.

Vera Romariz, por outro lado, foi o triunfo de Kafka. Onde ele se debateu, ela agiu. Enquanto ele vivia uma guerra interna, ela assumiu explicitamente sua vocação desde o início. A história de Vera Romariz é a prova viva de que a coragem de seguir o talento pode vencer o pragmatismo do mercado. Sua escolha, que parecia loucura em 1973, a transformou na Diva da Literatura Alagoana. Por anos, ela foi professora de literatura na nossa Ufal; sua poesia é estudada, sua obra é celebrada.

Vera Romariz(vestida de verde), no café Dr. Dirceu Falcão (coleçãoparticular).

Hoje, os jovens continuam esmagados. Não mais pela escassez de vagas, mas pelo excesso de opções de carreiras. Como bem definiu o filósofo Byung-Chul Han, vivemos na “sociedade da transparência e do cansaço”, onde a escolha de uma carreira se tornou uma decisão existencial.

Escolher uma profissão aos 16/17 anos continua a ser uma decisão dificílima. Para uma vida inteira. Mas a história de Vera Romariz ressoa como um lembrete: a verdadeira realização não está em se encaixar nas exigências do mercado, mas em ter a coragem de ser quem você realmente é, transformando sua paixão em seu destino.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do EXTRA


Encontrou algum erro? Entre em contato