Engenho Cambuí – Uma Travessia
Por João Aderbal Raposo de Moraes
Há livros que se escrevem sozinhos, guiados pela memória; há outros que se escrevem pela necessidade de agradecer à vida. Engenho Cambuí – uma travessia, de João Batista Neto, pertence a ambas as espécies. É o reencontro entre o menino de Junqueiro e o médico de Maceió; entre a infância de engenho e o ofício de salvar vidas; entre o homem que recorda e o escritor que compreende.
A obra nasce de um gesto raro: o de transformar lembranças pessoais em herança coletiva. João Batista Neto escreve como quem atravessa o rio da própria vida e, ao chegar à outra margem, contempla o que foi, o que permanece e o que se perdeu. Seu texto, de cadência mansa e luminosa, é mais que narrativa: é testemunho de uma época e de uma gente. O engenho, a família, os mestres e os vizinhos não aparecem como relíquias particulares, mas como expressões de um mundo que o progresso insiste em apagar — o mundo da solidariedade, da palavra dada, do respeito à sabedoria simples.
Há, nas páginas do livro, o que Proust chamaria de memória involuntária: os sabores, os gestos, as vozes, as imagens que ressurgem não por vontade do autor, mas por fidelidade do coração. João escreve e, ao escrever, revive; mas, ao reviver, restitui a todos nós um pedaço do Nordeste. Essa é a força humanizadora de sua escrita — aquilo que faz da lembrança uma forma de resistência.
O engenho é, ao mesmo tempo, cenário e metáfora. Representa o espaço da formação, da aprendizagem e da partilha. É onde se entende o valor do tempo, o sentido do trabalho, o ritmo das colheitas e da vida. Ao narrar o Engenho Cambuí, João Batista Neto documenta um país: as transformações sociais que dissolveram os antigos laços comunitários, o declínio do patriarcado rural, a persistência da dignidade em meio à carência.

Mas quem lê o livro percebe que ele não fala apenas do passado. O médico, o professor e o escritor se misturam na mesma voz: a que acredita que toda travessia humana se faz de gratidão, de serviço e de amor. João Batista Neto é, por essência, um homem de travessias. Da infância modesta de Junqueiro à sala de cirurgia, da dor do paciente ao conforto da palavra, do engenho à universidade, ele levou consigo a mesma chama de servir.
Sua biografia — marcada por coragem, estudo e devoção à medicina — espelha-se na própria estrutura da obra: uma narrativa em que cada capítulo é também um ato de cuidado. Desde os plantões heroicos no sertão até as aulas cheias de entusiasmo na UFAL, João foi, antes de tudo, um guardião da vida. E talvez seja esse o verdadeiro engenho de sua existência: o de transformar o conhecimento em compaixão e a técnica em ternura.
Ao lado do autor, reconhece-se o pensador da medicina e o intérprete da condição humana. Em Engenho Cambuí – uma travessia, ele confirma o que Antonio Candido nos ensinou: a literatura é uma necessidade universal porque amplia a nossa visão do mundo e de nós mesmos. João amplia o mundo que viveu, e o devolve ao leitor com a serenidade dos que sabem que recordar é resistir ao esquecimento.
Há grandeza silenciosa no gesto de quem escreve não para vangloriar-se, mas para compartilhar o que aprendeu com o tempo. João Batista Neto, médico de corpos e memórias, deu-nos um livro que é ao mesmo tempo confissão e documento; história pessoal e crônica coletiva; engenho e travessia.
Ao narrar sua vida, ele ilumina a de muitos. Ao recordar o engenho, preserva uma civilização. E ao transformar a memória em escrita, torna-se parte do próprio patrimônio literário e moral de Alagoas. Engenho Cambuí – uma travessia é, assim, um espelho onde se refletem o menino, o médico, o mestre e o homem — e, acima de tudo, o humanista que compreendeu que a eternidade se constrói no cotidiano dos que servem com amor.
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do EXTRA
                            
            


