O tiro que elegeu um presidente
Ninguém acreditava que Álvaro Montenegro chegaria ao segundo turno, muito menos ao poder. Seu nome circulava na política havia décadas, sempre pelos cantos mais escuros: comissões parlamentares abafadas, contratos públicos mal explicados, amizades convenientes com empresários depois presos ou mortos em acidentes oportunos. Nunca fora condenado. Nunca fora absolvido. Sobrevivia no limbo da impunidade, esse território fértil da política.
Quando decidiu disputar a presidência, muitos riram. Outros se irritaram. Seus índices de rejeição eram brutais. Nem a máquina partidária parecia disposta a apostar fichas naquele cavalo cansado. Os estrategistas eram unânimes: não havia caminho eleitoral possível.
Foi numa noite abafada, em um hotel discreto longe da capital, que a campanha cruzou a última linha moral. A reunião começou tensa, terminou silenciosa. Alguém falou em “reviravolta emocional”. Outro completou: “o país ama vítimas”. Ninguém disse a palavra atentado não foi necessário.
A decisão amadureceu como um tumor.
O plano era simples, segundo diziam. Um tiro calculado, um ferimento superficial, uma imagem forte. Um homem odiado se tornaria humano. Um político suspeito viraria sobrevivente. Para isso, contrataram um intermediário que não fazia perguntas e um executor que prometia precisão cirúrgica. Um “matador de aluguel” que, ironicamente, garantia que ninguém morreria.
O comício foi marcado para uma praça simbólica, cercada de história e gente comum. Famílias, bandeiras, discursos ensaiados. Álvaro falava com voz firme, apesar do suor excessivo e do medo escondido nos olhos. Sabia que aquele seria seu último discurso como candidato irrelevante ou o primeiro como mito.
O disparo veio seco, alto, definitivo. Nada saiu como previsto.
O projétil entrou pelo abdômen, atravessando tecidos e certezas. Álvaro caiu sem entender. O corpo reagiu antes da mente. O sangue manchou o palanque, os gritos substituíram os aplausos, a multidão virou uma massa desorientada. O atirador sumiu. O roteiro desmoronou.
Na ambulância, entre soluços mecânicos e ordens médicas gritadas, Álvaro teve um raro momento de lucidez. O filho segurava sua mão, tentando conter o desespero. Foi então que o candidato, com a voz fraca e um sorriso quase infantil, pronunciou a frase que selaria o destino do país:
— Ganhamos a eleição.
No hospital, os médicos foram claros nos prontuários, mas cautelosos diante das câmeras. O ferimento era grave. Órgãos vitais haviam sido atingidos. Sobreviver seria um milagre. Mas o país não queria precisão técnica queria emoção. As imagens do homem ferido dominaram as redes, os jornais, os púlpitos. Questionar virou crime moral. Investigar virou insensibilidade.
A comoção fez o impossível. Álvaro venceu as eleições com folga.
Tomou posse debilitado, visivelmente envelhecido pelo trauma. Governava entre remédios fortes, fisioterapia e salas de cirurgia. Cada aparição pública era calculada para esconder a fragilidade. Cada assinatura de decreto exigia mais esforço do que admitiam os boletins oficiais.
A saúde nunca voltou. Vieram infecções, complicações, novas cirurgias. O corpo pagava o preço da mentira. O poder conquistado pelo engano cobrava em dor aquilo que fora obtido pela farsa.
Durante o mandato, governou pouco e sofreu muito. O presidente tornou-se um símbolo ambulante de resistência mas também de decadência. Morreu antes de concluir o mandato, oficialmente vítima das sequelas do atentado que o havia levado ao poder.
No funeral de Estado, discursos inflamados exaltaram coragem, sacrifício e destino. Nenhuma palavra sobre a reunião secreta, o contrato informal, o tiro que não deveria ter acertado.
O país chorou um presidente. Mas foi governado por uma encenação.
Elegeu, sem saber, a própria mentira e pagou o preço em silêncio.
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do EXTRA



