Sociedades litorâneas de Dirceu Lindoso
Texto de Ana Cláudia Laurindo
Ao artista as possibilidades! Dirceu Lindoso, em sua arte escrita, debulhou o que não poderia ter comunicado de outra maneira, tão cheios que estavam os seus olhos de tudo o que viu acontecer no norte alagoano. Assim fez desse povo boreal um celeiro vocabular que me fala aos ouvidos com grande pertença, como pessoa crescida nas proximidades de onde reinou Ana Rosário, a mãe de todos os filhos que ocuparam o território entre praias e matas, pelo autor descritos em sua obra romanesca Os Filhos de Ana Rosário.
O alagoano nascido em 1932 em Maragogi conquistou, desenvolveu e se apropriou de linguagens distintas nas diversas áreas por onde trilhou na escrita, mas é neste romance que resolvi encará-lo mais de perto, aceitando o desafio por ele deixado, ao grafar: “Essa história, Ana Rosário viveu, contou ou inventou? Cabe ao leitor responder”.
Já no início tentou confundir o leitor ao advertir que “este é um romance que passa numa região antiga de Alagoas e que descreve uma sociedade que não existe mais”. Como pode isso ser verdade, se nas linhas que desbravei consegui encontrar tantos atalhos conhecidos, palavras usadas pelos meus antigos, sendo que nasci em Maceió no ano de 1971 e com uma semana de vida já respirei em Matriz de Camaragibe?
“Descreve uma sociedade que desapareceu no tempo, mas que guarda sua beleza”. E tudo o que desaparece deixa uma semente, principalmente quando a literatura permite que o olhar sagaz de quem respeita o esforço de vida dos agrupamentos insistentes, transforme em metáforas políticas imbricadas na linguagem, o que lhe assanha, lhe incomoda, lhe apaixona.
A matriarca Ana Rosário difere de todas as versões brasileiras assim referendadas. Seus filhos não são padronizados, assim como os filhos das matas boreais eram lidos e compreendidos por Dirceu, que os deixou viver mesmo distantes das pertenças glamourosas dos poderes, em uma sociedade moldada pela violência que daqueles emana, mas capazes de gerir suas relações oscilando entre a santidade e o pecado, a vilania e a remissão, em uma reconfiguração de força que a todos os opressores se assemelhava, com o diferencial de abrir ao sol a normalidade dos crimes cometidos, enquanto aqueles outros fingem, negam, enganam.
“Então Ana Rosário mandou chamar seu filho Darci, mas o portador voltou dizendo que Darci se fora com uns ciganos, roubar cavalos no Vale do Camaragibe”. Posso jurar que cresci ouvindo histórias sobre ciganos que roubavam cavalos naquelas plagas. Para a sociedade matriarcal de Ana Rosário e sua avó Lucinda, não existia moral assemelhada a nenhuma outra conhecida, pois a riqueza conquistada com roubo e tomada de posses aos “desaparecidos” desafetos, não causava pesar, e seus muitos filhos lhe serviam para a realização de cada ato. Uma ontologia predatória que feriu Alagoas boreal desde a colonização, emerge em uma narrativa determinista sob a batuta conhecida da força.
Desde Passo de Camaragibe, circulado por Porto de Pedras, Bitingui, Japaratinga, São Bento, Maragogi, entre Porto Calvo e o baixo Camaragibe, circulam as aleivosias, putarias, fornicações e mortes, mais as dispensas das matas, águas, brejos e outeiros, construindo um povo que reconheço em territórios e vozes.
Dessa força natural, tão áspera e bela, que reluz em corpos vivos e mortes como história, respondo a Dirceu que Ana Rosário e seus filhos seguem antigos e vivos espalhados nesse norte que todos os dias nasce e morre, sem ser compreendido. De Ana eu não duvido.
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do EXTRA