colunista

Alari Romariz

Alari Romariz atuou por vários anos no Sindicato dos Servidores da Assembleia Legislativa de Alagoas e ganhou notoriedade ao denunciar esquemas de corrupção na folha de pagamento da casa em 1986

Conteúdo Opinativo

A vida dos velhinhos

27/02/2024 - 14:32

ACESSIBILIDADE


A infância é a melhor época de nossas vidas. Os pais cuidam de tudo e nossa responsabilidade é pouca. Na adolescência pensamos em ser os donos do mundo. Chega a maturidade e começamos a ver nossas obrigações com mais intensidade e vamos construindo nosso futuro.

Vem, entretanto, a velhice. Os filhos já saíram de casa, constituíram novas famílias e os velhos, se ainda vivos, permanecem juntos.

Nesse momento, perto do fim, tudo vai decaindo: a visão encurta, as forças diminuem, a audição torna-se pequena e o corpo vai ficando fraco. Sorte, muita sorte, se ambos ficarem lúcidos. No momento atual, grandes amigos nossos ficaram dementes e só encontram duas soluções: ou vão morar com os filhos ou vão para um asilo.
No nosso caso, eu e meu marido, estamos bem de cabeça, moramos numa boa casa e podemos pagar o salário a algumas pessoas que nos ajudam.

Uma filha insiste para irmos morar com ela. Temo tal mudança porque sou da teoria: “Cada um no seu canto chora seu pranto!” Todavia, tenho medo de chegar a hora em que devo sair de casa. Entrego a Deus!
Divirto-me, no entanto, com alguns lances que acontecem com os dois velhinhos: os esquecimentos normais na maturidade, acentuados na velhice, do tipo: “Onde estão meus óculos?” E alguém próximo responde: “Estão na sua cabeça”. Ou então: “Guardei o documento em tal lugar”. E depois de muita procura, encontra-se o papel em outro canto. E todos riem.

Fato irritante: ser chamada de velha. Apesar de idosa, acho que o respeito é importante. Melhor ser chamada de senhora.

Brincadeiras pejorativas que vêm sempre dos mais novos, chamando-nos de decrépitos, surdos cegos, ultrapassados, não são benvindas. Outro dia um jovem estava andando com o carro sem freio de mão. Disse a ele para consertar logo. Irônico, ele me perguntou: “Vovó entende de carro?” Não, disse. Mas sei que não se anda com um carro assim. Dias depois, o moço sabido entrou embaixo de um caminhão. Por sorte, ficou vivo.
As filhas viraram cuidadoras: viajam conosco, cuidam de nós na doença e ligam diariamente. Querem saber da taxa de glicose, da pressão e do nosso programa diário, mesmo morando em Pernambuco. O filho residente no Rio de Janeiro se preocupa menos com os dois velhinhos. Virou avô e me disse outro dia: “Agora entendo porque a senhora viajava tanto para ver os filhos; estou nessa fase”.

Com as pessoas que trabalham conosco, trato-as bem, mas vez em quando, sou testada. Descubro que falta algo. “A senhora não comprou”, diz um deles. Insisto na minha afirmativa. Quando encontram o material ou objeto procurado, me mostram e falam: “Bem que a senhora disse”. E eu retruco: Sou velha, mas não estou lesa! E todos riem.

Somos, eu e meu marido, vigilantes com nossa casa, nossos pagamentos, nossa saúde. Normalmente a programação semanal inclui médicos, dentistas, exames de laboratórios, tudo devidamente anotado e arquivado. Converso muito nas consultas e sempre quero saber de tudo. Sei que os profissionais de saúde não gostam, mas insisto em conhecer os detalhes.

Os leitores vão querer saber se o casal de velhinhos não se diverte. Claro que sim. São outros prazeres: viagens, hidroginástica, visita a parentes e amigos, uma compra no shopping com passagem pela praça de alimentação e nossas preferências na TV: jogos, filmes, noticiários.

Agradecemos a Deus todos os dias, na missa de Aparecida, por ter deixado que chegássemos aos 83 anos lúcidos, cuidando da saúde, com muito amor no coração.

Os esquecimentos, as gozações recebidas, as perguntas pejorativas, ficam por conta dos atropelos da vida.
Só nos resta chegar ao fim de nossa passagem pela terra com dignidade.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do EXTRA


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