colunista

Odilon Rios

Odilon Rios é jornalista, editor do portal Repórter Nordeste e escritor. Autor de 4 livros, mais recente é Bode Pendurado no Sino & Outras Crônicas (2023)

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Enterro de anjos

01/06/2024 - 06:00

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Ari Cipola, jornalista, morreu há 20 anos. Nasceu em São Paulo, foi correspondente da Folha de S. Paulo em Alagoas. Registrou o assassinato de Paulo Cesar Farias e a namorada Suzana Marcolino; a ascensão e queda da gangue fardada; a renúncia de Divaldo Suruagy; as questões familiares e republicanas da família Collor de Mello. Alagoas é Brasil. Nem melhor, nem pior. Somos partes da mesma estrutura cruel, incluindo choros e lágrimas contidos.

Em 1994, Ari Cipola testemunhou o funeral e enterro de Maria de Fátima, aos 28 dias de vida. Corpo limpo e cuidadosamente vestido por Aldo, de 10 anos, cujo pai, o Cícero José dos Santos, suplente de vereador, era dono da Funerária Padre Cícero, caixões preparados pelos outros filhos também menores. Depois do ritual, Maria de Fátima seria levada para a cova, sem lágrimas ou velas. O pai Manoel Vicente teve de ficar em casa, cuidando dos três filhos menores, todos com pneumonia, todos vítimas da fome.

Maria nasceu de um parto de trigêmeas. Foi a segunda a morrer. A terceira ainda estava internada em Coruripe, ao lado da mãe. Ambas com infecção. “Não há o que chorar. Estou preocupado em conseguir dinheiro para comprar remédio e leite para os vivos”, disse o pai, arrumando as flores colocadas pelas crianças num pequeno caixão azul em cima da mesa da cozinha.

No caminho para o buraco, última morada dos vivos, Rosângela, de 12 anos – a filha mais velha – conduzia a marcha, liderando outras crianças se revezando nas alças do caixão. A cova estava nas brechas de outras. “A criança foi enterrada sem que se fizesse nenhuma oração e em uma cova de 80 centímetros de profundidade por 1 metro de extensão. No cemitério municipal, que está com a capacidade esgotada, as crianças são enterradas entre os túmulos de cimento. 80% dos corpos do cemitério são de crianças”, escreve Ari Cipola.

A cada mil crianças que nasciam vivas em Teotônio Vilela, 377 morreram antes de completar um ano. Quase o dobro do recordista mundial, o Níger, país africano. Anos depois nasceu o Bolsa Família, ou seja, uma iniciativa federal. Trinta anos depois, Alagoas ainda continua a liderar os índices de mortalidade infantil. As iniciativas locais seguem menores, as federais continuam a movimentar as pequenas cidades. E os enterros de anjos são hoje em menor volume. Seguem, porém, longe dos olhos de muitos. Não de repórteres como Ari Cipola.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do EXTRA


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