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Odilon Rios

Jornalista, editor do portal Repórter Nordeste e escritor. Autor de 4 livros, mais recente é Bode Pendurado no Sino & Outras Crônicas (2023)

Conteúdo Opinativo

Mulheres alagoanas vão para a guerra

30/08/2025 - 06:00
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As antigas matas que dominavam a área norte entre Alagoas e Pernambuco já não existem mais. Foram derrubadas para dar lugar ao domínio da fome e da cana-de-açúcar, mas um dia abrigaram um conflito entre os pobres mais pobres e o exército imperial. A Guerra dos Cabanos durou de 1832 a 1835 e era liderada por Vicente Ferreira de Paula. As matas do Tombo Real, com esse nome por pertencerem ao Império, abrigavam escravos fugidos, indígenas, crianças, libertos desesperados de fome em meio à sufocante prosperidade dos engenhos. Floresta que garantia alimentação farta e o fim das relações senhoriais, da miséria, do massacre dos corpos até que virassem bagaços, jogados nas covas como esterco adubando o chão, substituídos por mais mãos, novos corpos e seus destinos traçados para a morte precoce e cruel.

Há, porém, personagens esquecidos. Principalmente as mulheres, muitas delas capturadas por estarem junto aos cabanos. Eram arrastadas para o Forte de Tamandaré (Pernambuco), postas em círculos e mortas a golpes de cacete pela polícia. Possivelmente o forte foi construído no século 17 para enfrentar a invasão dos holandeses. Dois séculos depois, virou prisão e local de tortura aos líderes cabanos.

A história é revisitada por Ismélia da Penha Balduce Tavares, em sua tese de mestrado Mulheres na Guerrilha: práticas e estratégias femininas na Guerra dos Cabanos Alagoas e Pernambuco (1832-1850), apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Ufal.

Mariana de Jesus foi uma das presas cabanas. Era viúva de José Francisco, preso e morto. Morava nas matas. Ela e os quatro filhos, Joaquim, Maria, Josefa e Manoel foram levados para o Forte de Tamandaré.

A negra Maria Luiza e seu filho também foram capturados, mas alguém pagou a fiança de ambos, ação que também incluía a expulsão dos ex-cabanos para outros lugares do país. Foi o mesmo destino de Ana Preta, moradora do Engenho Rainha na freguesia de São Bento, termo de Porto Calvo. Presa nas matas, teve a fiança paga por José Ignácio Buarque em 18/8/1834. Mudou-se para a Paraíba.

Lauriana Maria era companheira de Vicente Ferreira de Paula. Ele conseguiu fugir. Ela, no entanto, foi capturada durante uma ação no Engenho Pacavira, hoje na região de Tamandaré, em 1834. A presença dela na história da Guerra dos cabanos é mais expressiva. O historiador Alfredo Brandão, em relato recuperado por Ismélia, conversou com um velho preto que morava em Viçosa e testemunhou a tomada da fazenda onde trabalhava, em Atalaia. Viu Vicente Ferreira de Paula entrar na casa grande, ordenar o sacrifício de bois para garantir comida à sua tropa. E, ao lado de Vicente estava Lauriana, “uma rapariga morena e bonita”, mesma descrição que consta sobre ela nos documentos oficiais do exército imperial.

“A palavra guerra surge na fala da guerreira Lauriana, porque para essa massa oprimida, humilhada e vítima de uma trama política organizada só restava o embate, a guerra”, diz Ismélia em sua dissertação de mestrado. Ela diz existir um esquecimento intencional historiográfico do papel das mulheres na Guerra dos Cabanos.

“A mulher é totalmente excluída, um ser inexistente numa sociedade de homens”, explica, fenômeno ainda pior em se tratando de uma revolta popular envolvendo uma população mais pobre e também “colocando em risco o poder dos homens viris da ordem senhorial” da guarda nacional.

Com o fim da guerra, veio a fome. Todas as pequenas plantações espalhadas pelos cabanos foram destruídas pelos soldados. O de comer voltou a ser controlado pelos engenhos. A vontade do estômago é a chefe do poder local. Até hoje.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do EXTRA


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